21/03/2008

MEMÓRIAS DA GUERRA (K)

O Sol torra torra de sempre a incidir sobre o telhado de zinco, e ou ,luzalite, do edifício extenso e alto do refeitório das praças, à hora precisa em que o capitão procedia à prova do almoço e assinava o termo de responsabilidade para que fosse servido.
A algazarra do costume. Dezenas de vozes carentes de se fazerem ouvir. O silêncio à ordem de sentido, dada pelo furriel de serviço. Perfilados ao redor das mesas. Rostos magros de flores da pátria escolhidas ao pormenor e acreditando que a pátria é um valor acrescentado.
Ordenado que foi o : à vontade! Voltam as conversas, em rumores que se confundem com o tinir das marmitas de alumínio, a colher que retira o caldo de massa do interior da terrina, sem um verde esperança de legumes, só massa e batatas e talvez um fio de azeite.
O segundo prato, ou conduto, é repetitivo. Hoje massa, ontem arroz, amanhã batatas e sebo.
Digo sebo porque a parte da rês que tocava à soldadesca, à tropa macaca, compunha-se das partes mais gordas da carcaça. As febras eram destinadas a sargentos e oficiais.
Manuel António observava em silêncio a sofreguidão com que a maioria devorava a mixórdia aprovada pelo capitão. Só há uma forma de reclamar, prevista no código militar, e tem de ser em uníssono, o levantamento de rancho. Com aqueles alarves não era possível. O vinho ácido e quente. O pão, o verdadeiro maná.
Manuel António repetiu a sopa deslavada e trouxe o pão para o comer com leite achocolatado ou laranjada, em jeito de sopa feita e comida na hora (pedaço de pão na boca, golo do liquido doce e os dentes a torturar o pão assim embebido). Um maná.
À saída do refeitório apinhavam-se em fila ordenada, disciplinada, crianças e adolescentes, com latas vazias pedindo os restos de comida a troco da lavagem da marmita. Meninos e meninas sem escola nem profissão.
Passam mulheres de tronco nu, os seios flácidos, tripas caídas sobre o umbigo, os corpos magros de fomes antigas, velhas; as moças de seios rígidos, virgens de caricias , bajudas na linguagem crioula, intocáveis porque já prometidas, vendidas, agendadas; mulheres chamadas de grande, porque casadas, de seios redondos e fortes carregados de leite levando bebés atrelados às costas e crianças, púberes, uma leve tanga sobre a anca, os seios pequeninos a despontar.
Desfilam no seu andar cadenciado, sem pressas e trocam saudações e cospem no chão de terra amarelada e seca, perante os olhos gulosos da soldadesca em ressaca de afectos.
-Bunda di
É pessoal. Eu não é bajuda. Eu mulher grande. E cospem no chão sedento da parada.
Soldados tiram fotografias com alguma jovem de seios rígidos e colocam as mãos descaídas numa caricia marota que não encontra sensibilidade. Aqueles mamilos estão mortos. Aquelas mulheres não tem orgasmos. São meras peças da engrenagem da procriação e trabalham nas bolanhas, na moagem do arroz no pilão, na lavagem dos panos e túnicas.
À noite, volta o silêncio, apenas consentido o ruído do motor da geradora, que, de habitual, já não ressoa nos ouvidos dos homens que querem dormir.
Manuel António e o Vago mestre discutem as opções dos povos face à opressão do imperialismo das grandes potências. E concordam que é na luta pela emancipação, no sangue vertido em combates absurdos, na tragédia da fome e das violações sistemáticas, que os povos edificam a sua nação.

autor: joão raimundo

1 comentário:

. disse...

J, vou tratar-te por tu, mas com todo o respeito. É apenas para simplificar a escrita. És escritor? Se não és, não estou a ver porque não sejas. Tanta gente a escrever mal e os abençoados da escrita nunca são conhecidos. Luz de Estrelas