13/03/2008

MEMÓRIAS DA GUERRA ( J )

- "Nós por cá todos bem. Envio beijos e abraços à minha mãe, pai, à Ermelinda ( O nosso filho já nasceu ?), aos meus avó e amigos ao ti Zé da taberna, com votos de um feliz Natal. Espero, em breve, estar na vossa companhia"
A fila era enorme sob o sol escaldante e obrigara à vinda dos T6 para prevenir o deflagrar de qualquer acção inimiga e proteger as vidas das senhoras do M.N.F e repórteres de imagem.
Os homens esforçavam-se por manter um ar natural e saudável, não obstante o sol implacável a provocar suores e a atracção da mosquitagem pelo liquido pegajoso. Todo o procedimento em perfeita obediência à disciplina militar, sem atropelos, sem pressas. Amanhã haveria nova sessão e quem não falasse, as palavras de uns serviriam para as famílias de todos. O tempo era curto e havia que estar em todos os locais.
Chegavam de helicóptero, as senhoras brancas de pele, maquilhagem a disfarçar a idade, saia abaixo do joelho, mais parecendo jagudis olhando a macacada na esperança de ver algum tombar para gáudio dos seus apetites lúdicos.
Traziam cigarros e bate estradas que distribuíam, trocando palavras avulsas de patriotismo e piadas descabidas do contexto. Antes trouxessem legumes.
Manuel António não foi contemplado na selecção das saudações Nataliceas. Estava conotado como elemento subversivo, embora pacífico, mas não fosse extravasar, . Não que qualquer mensagem abusiva pudesse chegar a casa das pessoas, a censura não o permitiria, mas o comandante gostava deste jovem, admirava a sua postura face ao conflito, a coerência de princípios, a humanidade na entreajuda aos companheiros.
Manuel António encaminhou-se para o edifício onde funcionava o armazém de géneros. O vago mestre fazia contas, ou rabiscava as faltas num caderno de folhas amareladas.
-Ainda bem que vieste, podes dar-me uma ajuda na contagem de produtos que estão lá em cima.
- Vamos a isso. Prefiro a continuar inserido na palhaçada das saudações.
Os produtos, cobertos de pó, pelo desuso, amordaçados em caixas de cartão ao alto, na última prateleira, revelaram-se, para Manuel António, como a descoberta de água num deserto e foi escrevendo no caderno amarelado, os títulos e a quantidade, meneando a cabeça, impaciente por acabar, descer e confrontar o amigo.
No armazém, junto ao tecto, o efeito de estufa que as frestas das telhas de luzalite só à noite amenizavam. A água escorrendo pelo corpo, a pegar-se como óleo de cheiro pestilento,Catinga.
Desceu a escada improvisada, repôs os níveis de água destilados, água fresca do frigorífico, privilégios, água salobra a lembrar o anúncio " a saúde está primeiro, beba água do vimeiro " e atacou.
- Então, meu amigo das conversas nocturnas, humanista dos quatro costados, a sopa é de massa com água, há meses e guardas os legumes sagrados para quê? Para encher os bolsos de quem?
- Legumes?! Estás louco? Quais legumes?
Manuel António pegou no caderno e cantou:
- Cenoura leofilizada, mil embalagens. Feijão verde, leofilizado, mil embalagens. cebola leofilizada, mil embalagens, batata leofilizada, mil embalagens. Ervilhas leofilizadas, mil embalagens.
O vago mestre mostrou surpresa sentida, afastando qualquer intuito de subtracção de riqueza. Simplesmente não sabia.
- A partir de amanhã podes contar com sopa de legumes todos os dias até ao fim dos produtos armazenados e não fales disto a ninguém.
E seguiram os dois, abraçados na cumplicidade, a imaginar o efeito do rancho ao almoço do dia seguinte.
Na parada, o sol a fazer-se ao ocaso, mais amarelo, como que atacado pela malária, as senhoras do M.N.F , perdido o viço inicial com a frescura da manhã, mas ainda assim cobiçadas por mentes desfalecidas de prazer.

Autor: João Raimundo

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