O manto de capim seco e amarelo à volta do acantonamento era passível de ocultar um qualquer avanço do inimigo, fugindo ao alerta da sentinela atenta e bem que podia ser cortado manhã cedo, quando o sol ainda desperta. Mas não. O comandante ordenava que a tarefa seria executada após o almoço, para quebrar a indolência e exacerbar a agressividade.
Manuel António cortava o capim e mais uns quantos, enquanto outros o amontoavam na clareira e procediam à queima. O cabelo curto, as faces magras, o suor deslizando pelo corpo nu, sussurrando entre dentes: filhos da puta!...
Ao longe, o som ritmado do pilão, o bater das palmas, a cantoria imperceptível de vozes juvenis, a sobressair do silêncio, Alexandra um amor enorme, do tamanho do mundo, o grito dos macacos em pequenas guerras absurdas na defesa dos direitos ancestrais, desde quando?
Acabada a tarefa, passos trémulos de cansaço, encontra o vago mestre, companheiro dos diálogos da noite,quando o barulho dos motores da geradora abafam a clareza das palavras subversivas, que o convida à orgia.
Na sala pequena da dispensa, uma terrina de sopa, dois, três litros, talvez mais, de uma mistura amarela, cerveja/vinho branco/gelo/açúcar, sobre a mesa tosca de madeira, e uma caneca, duas, de alumínio.
-Bebe, deves ter sede.
Bebeu. Era agradável. Bebeu mais. Perdeu a noção do tempo, a memória em amnésia compulsiva. Um e outro abraçados, dançando a um som que só eles ouviam, proferindo palavras de descrédito contra a instituição, contra os poderes que lhes retiraram a condição humana e os reduzira a uma subespécie, ordeira e contemplativa.
Vazaram a terrina, saíram, procurando dar um ar de compostura ao andar, equilíbrio impossível, zigue zague em direcção à caserna, o cérebro às voltas com a direcção certa. Deserto. Alguém que dá uma ajuda, soltando gargalhadas do ridículo. Cair na cama, o tecto às voltas. Parar. Parar. Vomitar até à bílis, o chão de cimento imundo, o cansaço. Adormeceu.
Autor: João Raimundo
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