31/08/2008

SAMSARA- DIÁLOGOS DA ALMA

Quando o comandante do avião anunciou a descida para o aeroporto do Funchal, um tremor de emoção percorreu o meu corpo adormecido, acordando-me de um leve torpor e deixando retidas na minha memória imagens fantásticas de nuvens a galope, sobrepondo-se umas ás outras em imensos flocos de uma brancura e de uma leveza sensual.
A dada altura, provavelmente por a descida ser bem acentuada, a pressão que se faz sentir, parece querer fazer saltar todo o cérebro, numa sensação estranha que eu já tinha sentido em África, quando viajei num pequeno avião de guerra. As entranhas a quererem saltar, todo eu. Surdo, abrir as maxilas. Uma dor fortemente aguda nas frontes. A impressão de que o cérebro vai rebentar a todo o momento. O susto e o toque salvador das rodas na pista.
Chegar numa manhã de Domingo, o Sol castigador, desde logo cedo.
Enquanto espero as malas da bagagem, acendo um cigarro e olho em volta. E dou de olhos nos teus olhos, castanhos, refulgentes de vida mas tristes. O que sobressai de ti é o sorriso, imenso de simpatia, de sinceridade plena.
Quando deste por eu te olhar, os teus tomaram uma atitude altiva. Levantaste um pouco mais os teus belos cabelos castanhos que te caíam sobre os ombros. Bonita, pensei, mas estranho aquele olhar e o que vai naquela alma.
Absorvido nos meus pensamentos de ti, deixei cair o isqueiro e tu apressaste-te a apanhá-lo. Os meus olhos nos teus olhos e o teu sorriso.
“Olá. Chamo-me neoabjeccionismo e sinto que na temperatura amena da Ilha mais cosmopolita, o teu rosto é um mimo de encantos. e a imagem de Princesa Esquimó, um sonho de mudança”.
Levantaste-te com um ar irritado pelo tom atrevido das minhas palavras. Nem eu sei porque as disse, como fui capaz de as dizer. Foi um impulso abusivo de mim, de algo de mim que subiste em mistério. Os teus lábios fecharam o sorriso, uma nuvem espessa cobriram a retina dos olhos que antes brilhavam, e disseste, a voz trémula, grave
“Não sei se dê a boas vindas a uma pessoa que se chama "neoabjeccionismo". Os teus pais não gostavam de ti, ou o "Neo" quer dizer algo "muito à frente" que só um Uraniano compreenderia? Mas como sou um Rato Balança...Vou dar o benefício da dúvida e vou mesmo fazer um esforço para acreditar que o que disseste é cheio de boas intenções. Sou a Samsara.
Chegaram-me as malas e a pessoa que esperavas e saíste deitando-me um olhar de despeito.
Chegado ao hotel tomei um duche para me refrescar e fui ver a Cidade.
A primeira impressão de uma estranha e sensual beleza. O asseio nos passeios. O casario subindo os declives, o mar azul e a lembrança de miúdos, quando brincávamos no juncal, em jeito de desafio.
-É malta, levamos uma chata e vamos a remar até à Madeira. No mapa era como se a distância se medisse com um palmo.
Estava tão longe de um dia ser possível realizar esse sonho. E aqui estava eu. Madeira, a Pérola do Atlântico.
Comecei por vaguear por toda a parte baixa da cidade, encantando-me da arquitectura, das belas mulheres encaloradas, de múltiplas Nacionalidades, da vista sob as íngremes montanhas, até aos picos, nublados por densas nuvens, aqui e ali deixando que se abrisse o azul do céu.
A marina e os restaurantes em forma de barco, ou mesmo de antigos barcos recuperados para o efeito, A alameda ajardinada e embelezada de quiosques entre palmeiras e outras plantas e flores exóticas.
Percorrer a via Atlântica, longa e recheada de motivos de paragem, a fortaleza, os jardins em escada que vão dar ao casino e os próprios jardins do casino, de plantas luxuriantes e lindas de uma beleza de verdes e multi cores que contrasta com a imensidão azul do mar.
E como aquilatar da beleza sem ter por oposição a coisa feia, o desajuste da harmonia que se sente em canta encanto. Nos olhos das pessoas que não sorriem. Nos miúdos andrajosos que vagueiam desajustados do fausto da paisagem. O clima quente e húmido que me cola a camisa ao corpo.
Eu fora convidado para a inauguração duma livraria que se propunha ser um veículo de cultura, moderno e diferente de outros modelos já existentes na Cidade, a temática da cultura para todos e ao serviço de todos, as novas fronteiras do conhecimento e do saber...
Jantei nos Combatentes, servido por empregadas de Libré e um sorriso de enorme simpatia, em frente um dos belos jardins da cidade.
Quando cheguei ao local do evento, no Madeira shopping, a noite descera sobre a cidade e mostrava-me um deslumbrante espectáculo de cor e luz, das casas que subiam a montanha em toda a volta para onde eu olhasse. É um êxtase.
Já havia muitos convidados que se passeavam de copo na mão e petiscando das iguarias espalhadas em pequenas mesas ao redor da sala. E dei de caras com ela, que se ria em cristalinas gargalhadas com um grupo de amigas e que se quedou ao ver-me, de repente, como se de um fantasma.
Sorri para ela e disse em jeito de cumprimento:
“Olá, Samsara, para quem me dá um desprezível beneficio da dúvida, vê-la duas vezes num mesmo dia, não está nada mau. Quero reafirmar a sinceridade do que disse. E quanto ao neoabjeccionismo, é uma corrente de escrita, como que uma filosofia do desespero, que deriva do abjeccionismo, que não procura ofender ninguém em particular. E não me pareceu nada ético, que da sua principesca tribuna tenha chamado à vida, os meus falecidos pais. Mas vindo desta região , já nada me admira”
Tinha-se feito um silêncio em volta. As tuas amigas não perceberam o que se passava, o porquê daquelas palavras e ditas com um sorriso. Tu ficaste vermelha , mas os teus olhos brilhavam e intempestivamente largaste uma sonora gargalhada.
Uma das tuas amigas, a Luísa não gostou do meu tom, nem de algumas das minhas palavras e sem rodeios, citando-me, para melhor se situar:
“ “Mas vindo desta região, já nada me admira?”...Que engraçado, pelos vistos não a conhece, a Samsara não é Madeirense. Apenas costuma dizer que se sente mais Madeirense. Ou está a dizer que as gentes do Continente são mal educadinhas? Hum...talvez seja mesmo isso que quis dizer.
Ups...ou será que não?...”
Luísa, penso num relâmpago, tão bonito o teu rosto, tão jovem, os olhos grandes cintilantes, os lábios sedutores, o cabelo negro, a tua pele. Uma beleza que dói de olhar. O teu ar de desafio a parecer uma galinha da Índia empoleirada. Mas séria.. e ainda uma menina...
A anfitriã interrompe o nosso diálogo, surgindo admirada por nos ver em acalorado diálogo e sem se aperceber que eram tensas as palavras trocadas sob o ruído das conversas envolventes.
“Viva, Neo, Chegou e nem dei por si. Mas vejo que já fez amigas!...”
Carla, tinha vindo dos Açores apaixonada por um homem que lhe prometera a Lua e o Sol, sem se aperceber que o Sol e a Lua eram dois amantes condenados à solidão estática da distância. Que se encontravam de tempos a tempos quando, por motivos cósmicos, um deles eclipsa o outro dos nossos olhos. Desesperara de raiva porque se tinha entregue na sua totalidade à ilusão de um amor eterno, que não soubera distinguir da simples atracção física e do encanto das palavras galantes. ”Carla!...Valquíria da Terceira!. Exclamei, beijando-a nas faces coradas pelo ambiente ou pelo champanhe que já corria de boca em boca, gelado, doce entre acepipes de sabor contrário.
“Faço já as apresentações. A Samsara- Ui...o teu perfume, mulher, os teus lábios quentes sobre a minha pele, a sensação de frescura que deixaram. – A Luísa...- o teu beijo de lado, em falso, descomprometido de qualquer sentido que indicie amizade, mas o teu aroma a chegar-me fresco, sedutor, inocente. - A Anabela...tens um olhar longínquo, ausente, como se procurasses alguém em abstracto, mas és bela e o teu sorriso aprisiona-me. - E esta a Infiel.., o teu abraço confiante, expansivo e os beijos nas faces quase a tocar-me os lábios, atrevida, como se me quisesses sorver no momento. - Desculpem, meninas, mas vamos começar e o Neo vai ter que se sentar na mesa dos discursos..

nota:" o texto é pura ficção,qualquer semelhança de nomes é pura coincidência."
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É o que me proponho. Escrever sobre vidas anónimas que valem as luzes da ribalta ou a fixação histórica e que traduzem a essência de um povo. Primeiro de uma família. Primeiro ainda, ou antes de tudo, a essência de um homem, de uma mulher.
Escreverei por encomenda, preços de acordo com extensão e pesquisa de documentação. Mas com a paixão que o percurso proposto me suscitar.
Aguardo a vossa proposta.

J.R.G.

2 comentários:

Anónimo disse...

Espantoso!


Aprendi mais nesta noite do que nos anos que já vivi...

Sesseta e novezxtnmf

tem a palavra o povo disse...

Uma única frase e é todo um poema.Gostei, sobretudo, do Sessenta e novezxtnmf
Que é um absoluto quandos os corpos e a alma estão em sintonia.
Quando gratuitamente é: noves fora nada.