22/08/2008

CRÓNICA DA CIDADE GRANDE

Vista de onde eu a vejo, a Cidade é extensa e intensa, dorme de luzes acesas em continuo e tem a Lua poderosa como estigma dos sonhos.
Estou do outro lado da Cidade grande, descaído para a foz do rio que a banha vindo de Espanha. Na marginal correm luzes possessas sem destino. Infinitas. Sei quando é o comboio, pelas janelas iluminadas, o som das rodas nos carris de ferro, ou quando é uma ambulância que se esgueira por entre os possessos dos outros, distraídos, a verem de onde vem o som de alarme, de SOS, se é para eles ou para uns outros .
Estou na penumbra da outra margem obscura frente à cidade grande e tive sonhos, tenho sonhos, de ser grande como a Cidade
O brilho da Lua quase ofusca as luzes da Cidade e produz ecos que ressoam na minha memória incandescente. A brisa é fresca, suave, amena e em frente há casa com luzes acesas.
Fixo os meus olhos em uma delas, é como se um pisca-pisca alucinante, como um íman poderoso, distante, me apelasse o registo. Sim, são dois vultos que se movem, parecem lutar pela posse de algo que não vejo ainda bem. Sinto que são um homem e uma mulher, ainda jovens. Acusam-se mutuamente, gritam, choram e agarram-se desesperadamente, soltando palavras que ferem. Culpabilizando-se. E movem-se em contínuos movimentos de vai e vem em roda de um candeeiro de mesa ou de tecto.
_Acreditei nos teus sentimentos. Na tua lealdade. Saíste-me um traste. São palavras da mulher entre soluços de dor profunda._ deixaste de me amar.
_Tu é que só pensas em ti, não tens a noção de projecto conjunto, de espaço. Já não me amas e eu amo-te. Quero amar-te sempre. _São dele, as palavras proferidas no silêncio aparente da Cidade. Silêncio absurdo sobressaindo dos ruídos.
Percebo, o que eles disputam. É algo invisível que se lhes escapa a cada gesto Disputam amor, algo que sentiram, que sentem, mas que não entendem como se esfuma, se esvai deles que o querer reter, porque o queriam estanque, à mão de cada zanga, à mão dos desejos quando o desespero de ficar só aperta o sentimento de amar.
Desvio os olhos para a luz azul celeste na negritude da noite. Impaciente perante a passividade, o condutor liga a sirene. Leva uma criança que chora, que arde em febre de origem desconhecida. Um homem e uma mulher trocam olhares de socorro mútuo. Dizem palavras com os olhos, entre si e para a criança que lhes estende os braços. O seu filho. E é amor o que vejo, tanto que me seduz, me pára o pensamento, me encanta de mim, porque são formas de amor distintas que eu vejo naqueles olhos e naqueles olhares. Amores diversos, acutilantes, que se entre cruzam.
Gente jovem deambula pelas ruas em busca de mais horas de vida. Garrafas de cerveja nas mãos, risos estridentes, palavreado fácil, inútil. Apenas palavras para se ouvirem. Palavras que procuram projectar alegrias em si e nos outros. Palavras , por vezes amargas, outras obscenas, arrogantes ou simplesmente afectuosas, se são amantes. Palavras para esquecer ao dealbar do dia. Que fiz? Por onde andei? Que foi que disse ou prometi? E a quem? E amanhã?
Vejo brigas, discussões fúteis que provocam agressões. Assaltos de delinquentes menores.
Capitães da rua, decididos, disciplinados, cheios de vontade de serem maiores, ou tão grandes como a cidade. Seguem em grupo porque sozinhos perdem a força. Caçam como as Leoas, em grupo, escolhem a presa, também a mais fraca, debilitada.
Há gente que trabalha, despudoradamente, trabalha na noite para que a Cidade não estagne. Trabalham para poder pagar tudo o que gastam , que se torna numa justificante, para continuarem a trabalhar. A apresentação, o carro, a alimentação, a casa própria, o estatuto, a moda.
Vagabundos alienados procuram insistentemente nos caixotes de lixo algo que os reconforte. Têm pressa, antes da recolha que os inibe desse prazer de achar. Vasculham. Lançam impropérios por entre os dentes moídos, descarnados quando se riem.
Ás vezes procuram apenas um pedaço de cartão que lhes sirva de cama, um leito diferente, de cores e cheiros. Discutem uns com os outros, é meu! A garrafa vazia.
A Lua aproxima-se inexoravelmente da linha do horizonte, de onde passará para o outro lado de onde a vemos, estamos, de onde estou. E sei que o seu movimento produz mutações, alimenta desejos. Sei que influi na essência das almas que vagueiam na noite. E nas que dormem, que se disputam nos sonhos.
Estamos no dealbar de uma nova aurora e ainda tenho tempo de olhar a luz fraca, adormecida, do 12º , imponente, do lado de onde o Sol nasce, e aperceber-me dos movimentos exaltados de dois amantes que se entregam, como que na totalidade, tal a fluidez dos gestos e dos aromas que me chegam, os gemidos de prazer, os beijos, os ais do clímax, dum absoluto de amor.
Olho os corpos desnudos, despreocupados, relaxantes que as mãos de um e outro se acariciam ternurentos.
E mais à frente, salteando de janela em janela, os solitários que a insónia mantém vigilantes, desesperados de procuras insistentes sem achado: os amores frustrados, amigos desleais, contas por pagar, o desemprego, os pais que os abandonaram sem afectos, filhos desviados, os objectivos difusos, falhas de amor próprio, procuram, no passado, no seu passado, razões de afectação ao presente e esquecem-se de si, do seu interior onde tudo adormecido podia despertar, onde se asfixiam na amalgama de sentimentos profundos, dolorosos que se comprimem na ânsia de se soltarem, de uma palavra chave, uma luz, um milagre de si.
Sinto uma mudança brusca na aragem e um clarão ténue de claridade. Vai ser dia.
Ouço as vozes cavernosas dos primeiros pescadores, dos que chegam e dos que partem.
É o momento preciso em que a Cidade perde o brilho entre a bruma opaca da manhã junto ao rio.
Imensa, a Cidade grande, é agora um esboço e regurgita de um outro tipo de vida.

12 comentários:

**Viver a Alma** disse...
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tem a palavra o povo disse...

Mariz.
Boa noite. Que emoção, por tudo o que me traz e por ter morado num local onde também morei, embora noutro prédio,noutra rua, na António Nobre e em 1973.
Nessa torre, na altura era uma torre imensa,hoje há demasiadas tores imensas, morava um amigo meu de infância, o Carlos Vingadas, casado julgo com uma senhora Sueca, e que veio a suicidar.se, não sei em que circunstâncias, ele.
E morava um médico amigo da minha mulher, que fui acordar de madrugada por um problma de saúde dela. Era por cima da farmácia, lembra-se?
Quanto ao sitio, está tudo imutável, apenas uma rotunda junto ao canecão e pela avenida acima, as linhas do metro de superficie.
Foi nesta altura que morou lá?
A minha procura do ser, a minha própria convicção do ser, tem a ver precisamente com a esssência de nós. O corpo humano é composto de milhões de infimos microorganismos,células, bactérias, genes cromossomas...que nos seu conjunto e em confronto com a realidade do ambiente e a natureza de outros individuos, se evidencia como essência que é, que somos e nos determina no que pensamos e fazemos, somos. A nossa alma, a nossa espiritualidade.
As palavras são um complemento acessório ao desenvolvimento da espécie. A espécie que somos, antecede as palavras como as conhecemos. Convencionámos que somos humanos, mas podíamos ter sido marcados como simplesmante terrenos. O que eu procuro é essa essência que nos fixa nesta caminhada ordeira ou desavinda, de curta duração efectiva e conhecida, que nos determina a vivê-la sofridamente para tantos milhões de almas, e com que fim o fazemos, à medida que os mitos do céu e do inferno vão caindo por força do conhecimento que se agiganta em cada vez menor espaço de tempo.
É apena uma forma de pensar e de procura.
Obrigado por estar aqui com a sua luz tão intensa.
Tudo bom pra si
Neo

**Viver a Alma** disse...
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**Viver a Alma** disse...
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tem a palavra o povo disse...

Salvé Mariz!
Deixo-me encantar, maravilhado, em êxtase de fora de mim para dentro, para que nada se perca do que me vem da sua alma iluminada por sãbias vivências e dons espirituais.
Da forma como o diz, o céu e o inferno coabitam em nós. São os nossos demónios e as nossas criações para o bem, o nosso deslumbramento sobre os mistérios da evolução.
E os microorganismos são a essência da nossa vida, ou do corpo, e pensam e influenciam o nosso pensamento e forma de agir.
E é bem verdade que a energia positiva que colocamos nas nossas decisões e na apreciação dos problemas e dramas que nos afectam, evitam doenças e precipitações, muitas vezes lesivas de uma resolução eficaz e de acordo com os nossos desejos de bem estar e paz interior.
Mariz. Não sinto que fale demais, porque a sua palavra é fluente, é rica e profunda.
Apreciei a sua festa de aniversário com foguetes em 1966. Parece que foi ontem. E ainda aqui estamos nesta frescura em que a sinto. Mas retirou-se para um lugar de eleição paradísiaca, onde a vida contrasta com o que lhe surge pelo ecran do computador que lhe permite ir a qualquer lugar do mundo. Admiro-a profundamente.
Passarei no blog que me indicou. Tenho mantido correspondência até com adolescentes, com dramas familiares de pais desatentos e desavindos. Outras mais jovens e outras ainda, mais maduras, com maridos conflituosos, desviantes do sentido do amor e da vida. Procuro fazer a minha parte, creia, com o humanismo e espiritualidade que me é intrínseca e valendo-me dos meus dramas como vivências catapultantes
de novas energias.
Aqui as gralhas são menos corrigiveis porque o corrector está fora do espaço dos comentários. Mas digo-lhe, por que lhe sinto, quem escreve com a paixão que a Mariz imprime nas palavras, só pode acontecer gralhas, tal a profusão com que nos acodem ao cérebro. Não estamos mais lentos, elas é que tem pressa, as palavras! Portanto, acho normal!...
Este espaço de blog é mais selectivo. Ainda não percebi onde aparecem os posts editados.
Gosto deste espaço mas ainda ando à procura da sua optimização.
Os comentários que me chegam são porque eu comentei algo em outros blogs.
No Sapo nós vemos a lista de posts editados. Podemos ver se tem interesse e estabelecer o diálogo, com mais facilidade.
Mas no sapo há muita mediocridade,muita sujidade mental, mas encontram-se blogs profundos, com um pouco de paciência para os achar, porque são milhares.
Mariz. Um dia bom para si. Sei que ainda hoje voltaremos a falar. Tenho de ir ao seu espaço.
Tudo bom para si
Neo

**Viver a Alma** disse...
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**Viver a Alma** disse...
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**Viver a Alma** disse...
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tem a palavra o povo disse...

Mariz.
Tanta coisa bela na corrente de energia que as suas palavras me transmitem.
Sinto-a acalorada e presumo que dorida por algo que lhe disseram ou fizeram.
O que quero reter do seu comentário é a alegria pela crença dum bem absoluto que lhe advém do Céu e do Criador. A sua vontade de partilhar com os necessitados dum sentido válido para continuar a caminhada com um sorriso de confiança nos lábios.
A sua experiência vivida em tantos corredores da ribalta da vida. Os excessos que a vida subjectivamente nos cativa. Julgo sentir a grandeza da sua alma e tomarei atenção aos conselhos e avisos que a sua vivência prudentemente me envia. Também tenho a minha conta de desilusões por tanta credulidade.
Quero continuar a aprender e apreender de tudo o que me torne mais positivo, mais são, mais sábio que hoje que tão pouco sei.
É um bálsamo muito terno ter a simplicidade da sua amizade.
Vamos continuando a falar. A conhecer do hálo do bem que adeja sobre as nossas cabeças e que se interioriza nos nossos corações, para que sintamos a sua presença benéfica e dúctil.
Uma noite boa para a Mariz
Espavo

neo

Anónimo disse...

olá Neo...recebeu o meu comentário?
Beijos...

**Viver a Alma** disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
tem a palavra o povo disse...

Kleine Hexe.
Viva! É um prazer ler as suas palavras. Mas o único comentário que recebi seu, foi este mesmo perguntando se recebi, presumo que um outro.
Aguardo que regresse.
Beijinhos