24/05/2008

DESPEJO - A MEMÓRIA DOS LIVROS

Um homem e uma mulher, ainda jovens e um cão, preto, as sobrancelhas castanhas, um doce olhar acomodado à circunstância.
Na bagageira do carro, onde se acoitam e preparam a alma e o corpo para a noite, os livros, memórias que foram objectos da sua própria memória. Autores credenciados, humanistas, filósofos, o sumo das letras de todo um mundo de eras e ideias remotas.
Três seres e uma multidão de idiotas que sonharam um dia ser glória e só após o fim, um póstumo reconhecimento glorificou.
São três seres que se amam, ainda que de formas e sentidos diferentes. E estão ali, confinados ao interior de um pequeno automóvel, despejados da casa onde criaram raízes efémeras.
O cão, no banco traseiro, enrosca-se de maneira a aproveitar todo o calor de si e a que se reflicta em si, como que armazenado em condutas à volta do corpo.
O homem e a mulher assumem o amor no pleno da desolação. Aquecem a alma. Não falam, porque já não há nada para dizer. Uma leve manta a cobrir os corpos que ainda projectam calor e desejos. E amam-se, sôfregos, esquecidos de onde estão. Estão neles e nada mais há para além deles no momento. Não fornicam, amam-se. Não é sexo, o que fazem, é amor. Não há quadros de erotismo a povoar a mente, nem fantasias da libido. Nem conforto nem irracionalidade. Não um acto gratuito a que nem a presença do cão obstasse a que atingissem os orgasmos sem um nexo de causa. Amor, amor doentio de si, inexplicável, como um só, enrolados da mesma forma que o cão e como ele sujeitos à rua por momentos de dias.
Antes que o sol viesse iluminar os rostos cansados do descanso nocturno, puseram-se ao caminho, sem rasto anunciado. Para que ninguém publicitasse a ousadia de terem afrontado a moral pública instituída.
No paredão onde elites endeusadas distraíam os corpos ou simplesmente exibiam estilos de andar e conversas triviais, de alta importância para a construção do mundo, dispunham os livros que foram a memória. Em lotes pelo preço achado em cálculos sem um critério preciso. Pelo volume. Pela apreciação subjectiva do valor intrínseco das palavras. Pelo autor.
Livros que contribuíram para ele, homem, construir a sua própria concepção do mundo e que agora pretendia que se transformassem em pão, como se já sem outro préstimo.
Se tinham que partir, que partissem, enquanto olhava atento o desfolhar interessado de um qualquer que parara atraído pela cor ou um titulo mais expansivo, gritante, a chamar.
O titulo ou o autor, apelativos, sob o sol de Julho ainda fresco pela manhã e o mar, de um azul nacarado em manchas estranhas pela sombra de barcos abandonados ou pelos os lhos raiados de sangue, sereno, num chap-chap continuado contra as pedras da muralha.
Cada livro que parte é um orgasmo sentido com a volúpia de sentir a evasão de mais um mito. e a cada mito que se esvai, o seu próprio ser se encolhe empedernido.
Está tudo aqui, justifica-se perante si, já não fazem falta e são apenas pão. O miolo, a essência que os enformava, engoli, misturei com os genes em rodopios sangrentos de lutas de uns com os outros, dada a diversidade de conceitos, de verdades afiançadas, comprovadas. A oratória, a escolástica, a demagogia, a farsa, o drama, a megalomania, a filosofia e as doutrinas de fariseus, judeus, islamitas, budistas e cristãos. Tudo aqui, o dedo acusador ou só indicador, na testa enrugada.
E ao fim do dia foi-se, ele a mulher e mais o cão, e nunca mais ninguém os viu

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