Recordo a minha imagem de menino, o corpo nu e o olhar triste sobre a areia negra da rua junto à casa. Em redor, o juncal de águas estagnadas, onde os girinos candidatos a rãs e salamandras se movimentavam apressados.
Galinhas cacarejavam por entre os patos deliciados com as poças de água que se formavam onde a areia enrijara, batida pelos pés de anos e anos, desde que se formara o bairro de pedra e cal, a substituir as barracas andrajosas, albergues de famílias numerosas.
Era Dezembro frio e nevava na Serra, longe, talvez na Guarda, Bragança...quando eu nasci, ia o sol a meio e berrei alto que me deixassem crescer, que haveria de ser grande e homem.
Dizem que deu trabalho arrancar-me do ventre de minha mãe. Terá sido por isso que a nossa relação foi sempre distante? Talvez ela quisesse uma menina, ou nada.
Cresci triste e timido, temeroso de tudo o que gerasse violência e dos mistérios da noite.
Tenho o sentido de ter amado minha mãe e queixo-me de me ter sentido mal amado. o meu pai era de poucos afectos. Trabalhava dia e parte da noite para ter melhor vida, ou termos nós.
Quando dei por mim tinha crescido, alinhei nos namoricos de rapaz, joguei à pancada, apanhei raposas na escola e aprendi a fumar como os homens, rapei os pelos das pernas e do púbis para que crescecem depressa e de raposa em raposa, veio o trabalho árduo.
Cresci timido, triste e mau amante do meu corpo, encovado no torax pela tosse da bronquite asmática ,curada a papas de linhaça.
Dezembro é o mês da estrela redentora, logo, o meu curso de vida devia mudar a todo o instante, porque eu tinha sonhos, eu adormecia agarrado aos meu sonhos, ser homem, ser pessoa, ser um dos guardiães do mundo. Defender todos os fracos dos poderosos sem lei, para quem a lei fora feita, logo a lei de Deus. "Não desobedecerás ao teu senhor".
Voltar à escola, reaprender, ler desde o começo de onde se deve começar a ler. o romance, o documento, a filosofia, o pensamento humanista, a história. sobretudo a história que nos permite redimensionar o presente. A repetição dos acontecimentos é uma evidência, não igual, o mesmo item ou quadro de apresentação, mas os pressupostos, as incidências, as razões e as causas, a perfidia insinuosa das teias qe se tecem e envolvem os protagonistas, as causas e os efeitos, cada vez mais devastadores.
Amar. Descobrir que amar era possivel, à medida que o amor por mim, pelo meu corpo, pelo meu pénis quando me masturbava, pelo meu cheiro, de mim, crescia e se fortificava em confiança, em poder...Amei profundamente de mim e para além de mim. Sentir que alguém que não eu, me amava o corpo, me amava as palavras soltas pela alma, que acreditava ser possivel viver comigo um projecto consubstanciado no tempo. E era um outro corpo além de mim, uma outra alma, a alinhar-se a ser, a fundir-se como um só sendo dois, assumindo-se como um só sendo dois, até ao fim...
Estou sentado sob a palmeira junto ao rio e retenho a memória que me escorre lentamente, ás vezes rápida demais, atafulhando-me de palavras sobrepostas que se perfilam por fim, dipostas ordenadamente.
E veio a guerra, o medo dos medos, tensão e o reafirmar dos valores que eram já uma fortaleza do ser. Preservar a existência, os rosto de um povo simples, completamente simples, os olhos negros na pele negra, as crianças, a magia do seu olhar interrogativo, as barrigas opadas, o sorriso inocente e crédulo e amar, amar sempre como um fim únio de chegar a um infinito, amar acima de tudo o que vou sendo, o que estou sendo e ir ganhando aos poucos o tempo, de dentro do próprio tempo, uma infima nesga de espaço. Não ter achado o homem qu procuro, será que existe? , mas trazer um novo elan por ter vivido a busca intensamente, sentido a metáfora do homem novo, absoluto, total.
Viver a mais bela história de amor. Saciar-se de sexo e fantasias libidinosas, realizar a utopia, os filhos, o sucesso pessoal.
A derrocada...
Ter vencido tantas coisas e derrotas pesadas, julgadas demasiado pesadas, querer dar um fim a tudo, apagar tudo sem recomeço, apagar simplesmente e definitivamente., para qe não conste
Definhar até ao limite do fim e ressurgir desse nada quase absoluto, de onde ninguém pensa ser possivel voltar. Soerguer-se, olhar o horizonte carregado de nuvens e descobrir o sol. Fazer-se valer...ganhar a luz e arrancar de si, do fundo onde repousa a dor, o saber, o ser de novo que é ainda sendo, porque não deixei de ir sendo, não se é, vai-se sendo.
Reformular aceitando a evidência do que já aconteceu e continuar a amar, a amar-se. Voltar a sentir esse dom maravilhoso do amor. As palavras enxertadas de amor, como se foram novas, vicejantes e a fazerem-se acreditar. Amar de novo, ainda. Sentir o desassossego da alma, a ferroada do abandono e deixar-se amar de novo e amar de novo, a fazer-se ao tempo, como se fosse do tempo que corre.
Deixo entrelinhas por preencher. Faz frio sob a palmeira junto ao rio, agora que o sol se escondeu para lá do horizonte do mar.
Sou amigo, amante, amigante, também de mim homem...
É Dezembro e faz anos que gritei...pela primeira vez.
J.R.G.
4 comentários:
Já não vinha cá há algum tempo e feliz mal pois a qualidade dos textos perdura.
Um abraço
...Grande este Grito que acabei de ler...
Palavras que mostran um caminho percorrido ...ou caminhos.
Lembrei me de um poema de Mário Quintana que lhe deixo :
Caminho
Era um caminho que de tão velho, minha filha,
já nem mais sabia aonde ia...
Era um caminho
velhinho,
perdido...
Não havia traços
de passos no dia
em que por acaso o descobri:
pedras e urzes iam cobrindo tudo.
O caminho agonizava, morria
sozinho...
Eu vi...
Porque são os passos que fazem os caminhos.
.
Mário Quintana .
Agora quero agradecer as palavras tao simpáticas tal como o seu convite :)) Agradeço muito ...j.r.g
e é com certa pena que declino esse convite tao amável...devido em parte a falta de tempo...e depois por ja ter recusado outros convites tão simpáticos como o seu....Numa outra altura...quem sabe...
Espero que sempre que possa..aparece no meu (nosso )parapeito
Tudo de bom para si
Um abraço
maria loBos
Rui.
Bom dia, obrigado pelas palavras, continuo admirador do que escreves.
Um abraço
maria lobos
será que ainda uivam os lobos
nos caminhos velhos do tempo
que os passos do homem vivificam?
olho nascer do sol o voo dos pombos
oiço o grito da coruja pensamento
grito da alma os sons que me vincam
maria teu rosto os olhos a beleza
o néctar das palavras a sinfonia
acrescentar um novo item à história
que pena não poderes sinto tristeza
apenas um pouco de ti lá eu queria
guardarei o teu sentir na memória
maria lobos, obrigado pelos teus sentires, as palavras exultam do grito que ecoa no belo poema que me ofereces.
Entendo do tempo, de ter dito não a uns e não querer ser deselegante, era belo se fosse possivel.
Irei à janela, ao parapeito beber dessa alegria de viver.
Um beijinho amigo
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