29/11/2008

CARTAS A UMA MULHER AUSENTE...A REBELDINHA

A lua, hoje, surgiu por entre os prédios longe na cidade, imensa de tamanho e escarlate. Era como se uma bola de fogo flamejante tivesse surgido do nada e avançasse na direcção de onde eu estava e se apoderasse de mim, dos meus sentidos de mim, reduzindo-me a esperança de ser eu o centro da gravidade dos acontecimentos que ao redor do meu corpo, me envolviam de fora para dentro.
Durante meses, talvez anos, escrevi-lhe cartas de a fazer regressar à vida que avidamente procurava e constantemente se desalentava de encontrar, de reconhecer como a vida que queria viver. Cartas que mantenho na memória activa, como se acabasse de as escrever, e ás quais não obtinha qualquer resposta. Acreditava que ela as lia, que lhe eram indispensáveis, que lhe transmitiam a energia positiva para sorrir. Para vencer a inércia em que enclausurara a alma.
Tudo começou, de nós, quando ela me disse que estava desesperada. Acreditara num homem, num projecto de amor para construir uma família, dera-se na sua totalidade e até engravidara o que fora uma alegria imensa por se realizar, ou ver-se na possibilidade de se realizar como mãe. Cumprir-se como mulher plena. O fogo da paixão, a juvenilidade do corpo na sua formosura, a casa comprada entre os dois, a decoração, o respirar os cheiros, os dele e os dela, entrelaçados como as ondas do mar. O orgulho de si, da sua congeminação de si, de como se criara em imagem indestrutível, de firmeza e carácter forte.
Amava aquele homem como um pedaço de si própria. E ia ter um filho com ele, de uma parte dele, dum acto de amor sublime, como se lembrava!...
Toda a infância em perdas irreparáveis da sua estrutura emocional. E agora, como um sonho até há bem pouco inimaginável, este projecto de vida a dois, quase a três porque o sentia de dentro de si, um embrião em crescimento, a evidenciar-se como ser absoluto, um ser ela em um outro. A alegria luminosa que a acompanhava desde que ao acordar, ainda quentes os corpos, ele a beijava e faziam amor ao começo da manhã.
Um dia sentira uma dor de enlouquecer. Uma dor de fora do mundo, de dentro de si mas fora. Dum lado de fora que teimava em ser dentro da sua alma. Sentira.se mal, desmaiara, perdera a noção de lutar por si, de se suplantar como sempre acontecera em momentos de perda de algo que julgava importante.
Quando acordou, estranhamente desavinda da sua racionalidade. Onde estava, o que acontecera?, que fazia ali deitada entre quatro paredes e mais dois rostos que a olhavam,
rostos amarelecidos, surpresos dela ali, pesarosos dela. E a enfermeira que a olhava igualmente, um sorriso nos lábios mortiços, sem a vida que um sorriso intui, a tentar animá-la a ela que , deitada ,sentia frio, um frio estranho sobre o quente das cobertas da cama, Brancas.
-Perdi-o!...
E estavam secos, os olhos, porque se recusava a chorar sobre si, porque se fortalecera contra todos os elementos. Secos mas tristes. E estava só. O tipo com quem trocara juras de amor, a quem se entregara com a alma em chamas de paixão, porque acreditara em tudo o que ele lhe dissera. Sim, desertara, dissera-lhe palavras dolorosas, infames, que se iria embora se ela não conseguisse dar-lhe um filho. Que era uma vadia que andara a foder com uns e com outros e agora não aguentava um embrião no útero. Chamou-lhe bêbada, que talvez se tivesse drogado, prostituído.
Ela sabia que não, que tudo o que fizera fora em busca de um projecto de vida. Trabalhava 12 horas por dia para ser independente. Tinha sentimentos de amor, tinha paixão por pessoas e por ser mãe. E tinha a sua rebeldia, dava-se toda excepto na sua rebeldia, que era como que uma espécie de essência da sua totalidade.
O ser rebelde, nela, era não se deixar possuir, não se deixar ser objecto de ornamento, de posse, de ser de alguém que não ela própria. "A minha filha, a minha namorada, a minha mulher". Ela também não tinha nada de seu a não ser o que sentia que era e mesmo isso, a cada momento, mudava, já não era no momento seguinte.Tinha um nome, uma imagem, um sorriso, uma reputação de frívola nos amores.
-Sim, perdeste-o. Tinha uma deficiência grave.
-Não precisa dizer mais. Apenas saber que o perdi, o meu bebé. Talvez seja melhor que assim fosse...
Eu tinha-te escrito uma mensagem talvez de esperança, sem saber nada de ti, apenas as palavras, curtas as palavras, que me tinhas enviado.

"Não sei se sonhei com as tuas vitórias se adormeci sobre a tua alma e todas as emoções que tive ontem já de madrugada. Acordei com uma sensação de leveza e quando fui ao espelho olhar-me de fora de mim para dentro, senti o fogo desta emoção que é ter-te desperta, gritante dos teus valores que são imensos e cheios de virtudes.
Escrevo provavelmente disparates, mas fiquei eufórico de ti. Consegui ver a tua imagem na crista da onda. É uma imagem bela, não sei se gostas, os teus cabelos negros esvoaçando ao vento e tu gritando, saiam da frente que sou rebelde, sorriso lindo nos teus lábios de menina e já tão bela mulher, e já tão sofrida mulher, mas o sofrer trás maturidade, não amolece, antes vivifica o carácter indomável de viver e enfrentar tudo com a coragem de uma mulher Capricorniana.
Haverá uma mulher Capricorniana? Um lado feminino que cultiva igualmente a persistência, a vontade de ser melhor, a ambição de ser melhor.? Um ir ao fundo e voltar porque está no cimo o que se persegue e queremos alcançar a todo o custo?
Saúdo o teu dia, a tua semana, os segundos, os minutos, as horas. Saúdo o teu cheiro, o teu sorriso, o teu corpo, a tua alma, os teus passos firmes e decidios.Saúdo a tua voz doce e mordaz quando tiver que ser, a tua alegria de ti, porque só tu interessas meu amor de amiga.
Chorei contigo, choro contigo esta tua alegria de viver.. Eu vivenciei momentos similares não há muito tempo, uma dúzia de anos. E fui o mais alegre e querido dos personagens da vida que vivi.
Um bom dia para ti amiga, amor de amiga, na onda vou a teu lado, do lado de fora de ti, para que ninguém traiçoeiro te desvie do rumo, enquanto quiseres que vá."

Escrevo as palavras na esperança de te encontrar que elas te encontrem receptiva, te dêem a certeza que estás acompanhada e embora não receba noticias de ti, acredito que estás a resistir, não aos elementos exteriores que te magoaram, que te magoam, mas um resistir de ti a ti. Acredito na tua juventude, na sabedoria que consubstancia todo o teu viver. E vejo-te como um símbolo perfeito de uma imagem de mulher que faz parte da mudança, duma nova era ou ordem de coisas, de valores, que se desenha nos horizontes da humanidade. Há um mar de gente à tua espera, de olhos postos no que fazes para sair do labirinto que te armaram, e como o fazes...
E nada, do lado de lá de mim, onde tu estás, onde penso que te agitas, individualista, a congeminar hipóteses que se coadunem com os projectos, onde falta sempre um qualquer elemento indefinido, uma falta rebelde, que se rebela contra a tua própria rebeldia. Insisto.

"Sinto todo o turbilhão na tua vida e queria ser um pilar. Uma âncora. Uma mola potente que te catapultasse para níveis superiores do teu ser mulher.
Sinto que estou do lado de fora do teu tempo, ainda que pudesse ser um tempo ameno para a tua alma perturbada. É demasiado brutal tudo o que envolve a tua existência, embora eu pense que é sempre possível vencer a resistência que de dentro nos determina a solidão quando se impunha a união de esforços concertados e com o único interesse de te ajudar à libertação da alma, pela compreensão dos fenómenos que te comprimem e sufocam.
Quero dizer-te que não gosto da forma como encaras a solução de ti enquanto menina e enquanto mulher. Penso que não deves isolar-te. Perder não é sair vencida, perder é natural quando se joga e tu jogas uma parte de ti. Ainda que penses que jogaste tudo, não acredites, é algo de ti que faz Bluff, nunca jogamos tudo e ficamos cá para ver. Viveste um quarto de século de vida e há mais três quartos por viver, vamos a eles. Não como amantes do corpo, mas como amantes da alma, tu e eu, na distância do tempo
Façamos uma análise desapaixonada, como se lêssemos a contabilidade de uma loja de antiguidades. Descobrir o fio da meada que .que fez surgir em ti um ser mulher diferente das demais. Fazer evidenciar de ti todas as virtude, e são muitas. Amiga és uma menina muito virtuosa. É preciso reconstruir uma nova imagem da rebelde, construa-mo-la.
É preciso erradicar todos os conflitos que navegam no teu sangue e te povoam a alma e o corpo. erradique-mo-los.
Linda menina, amiga de mim. Não quero que percas o sorriso. Podes perder quase tudo, mas o sorriso não.
Estou aqui. Não posso partir ao teu encontro e no entanto parto, desta forma igualmente sã e onde podes responder aos teus anseios, desnudar-te dos teus mistérios. Vais ver que são tigres de papel e que tu és mais poderosa. Fazes parte da nova ordem, quero que faças...
Amiga, aceita a minha amizade. Sê rebelde."

A Lua cor de fogo está agora sobre mim. Posso ver o recorte das montanhas, ou dos vales ,saliências da evidente beleza intuída de um rosto belo de mulher. Lembro-me de antes de sabermos que eram montes, crateras, depressões e imaginávamos nela o rosto da nossa amada, ainda antes de sabermos, ou dizermos que a Lua é mentirosa porque não tinham sido inventadas as palavras.
Digo-te ainda que tu és uma solução do problema, como a água pura, o alimento das almas inquietas, uma parte da essência com que se constrói a paz e o amor.
Ficarei à espera, amiga, à tua espera, dum sinal teu, do infinito de onde te sei ou sinto que sei...