Na guerra, quando não estás só e és ainda povoado por mundos e gentes que estando longe, te ocupam uma parte importante do que o teu cérebro te permite pensar, é ainda a solidão de que te sentes, de que te és perante ti e a impotência de decidires no momento imediato, ou no certo.
As patentes sempre podem trocar influências entre si e entre os responsáveis das comunicações. Um telefonema, uma mensagem gravada. Ainda não era o tempo dos telemóveis. Os soldados, nada. Eram meros números mecanográficos, salvo alguns, raros, que tinham direito a alcunha.
O País já era , mas em tempo de guerra acentuava-se o ser, um sistema de ditadura democrática. Os oficiais e sargentos iam de férias uma vez em cada ano. Se bem que os soldados também pudessem, por direito, ir de férias, ficavam limitados à partida pelas condições económicas e pela quantidade. Não se podia fechar a guerra para férias.
Advinha destes condicionalismos a importância orgásmica da chegada da avioneta que supostamente trazia o correio, das famílias, dos amores.
Manuel António, os braços descansados sobre a rede de arame farpado, perscruta o céu amarelado pelo sol a meio tempo entre a manhã e a tarde. É a hora habitual de ver, primeiro ouvir o motor, difuso ainda que se aproxima e aumenta de som chegado aos ouvidos habituados a rumores. Lá vem.
Lentamente refulgindo do sol o pequeno aparelho mono-motor, que traz o correio e as instruções e ainda, por vezes, uma patente mais alta que vem aquilatar do estado das tropas, ou simplesmente passear, ou ouvir delações, repreender ao vivo em confidências
sem outros ouvidos.
Manuel António. Os olhos na pista de terra batida. Não há empecilhos, aves, animais tresmalhados. O aparelho oscila no ar a fazer-se à pista, cabriola, brinca, o piloto, esgrime-se na habilidade se ser poeta dos ares e traz poesia no bojo da máquina que conduz.
Bastava que entregasse o saco do correio e que se fosse, mas não. Havia sempre mais pormenores, conversa, troca de risos, galhofas, e o tempo desesperante na espera. A voz dos silêncios que chegava quente e melodiosa. Estaria melhor da doença? Ainda se
amavam? Teria já nascido o meu filho? Eram tudo perguntas possíveis e a ilusão de obter repostas, quando sabiam que as cartas passavam o crivo da censura, demoravam e o que traziam não eram noticias de ontem. Alguém podia já ter morrido, e na carta que chegava prometia o mundo quando ele chegasse. A traição podia já ter acontecido, entre a data de envio e a efectiva chegada das palavras que prometiam amor eterno.
Manuel António sabia isso, mas confiava nas certezas que da essência de si se avolumavam em realidade constante.
Na parada a roda da maralha embasbacada sobre o sol tórrido do meio dia.
- Quarenta e dois!
-Oi! O braço no ar, uma corrida, o envelope bem seguro e a passada lenta para a sombra da caserna.
Manuel António olhava o molho da cartas na mão do escriba. Conhecia as cartas dela pelo volume. Traziam sempre uma lembrança dela, por entre as muitas folhas de palavras doces e de esperança, pêlos da púbis, para que a cheirasse. Pedaços de cabelo, folhas de árvores ou flores., fotografias. Um êxtase de paixão a encher um espaço aberto dentro de si, ali, absorto do sol. O escriba brincava com ele, por vezes, escondia as cartas e chegado ao fim da chamada olhava o seu ar desolado, um sorriso malicioso nos lábios, Um brilho nos olhos.
- Toma lá. Com este volume não podia tê-las nas mãos. Enquanto as retirava do bolso traseiro do camuflado.
Manuel António, os olhos marejados, uma abraço exaltado.
-Foda-se, escriba. Vai brincar com o caralho!
E foi-se, lesto na procura de uma sombra. Um espaço mais amplo para si e para o seu amor.
Sem comentários:
Enviar um comentário