23/08/2009

N A N Y - Parte II

A minha alma passeou a sua inquietude nos sonhos da noite mal dormida, o corpo dorido, ante o alvor que corria célere e se mostrava na sua evidência de luz a meus olhos povoados de imagens sombrias, a aclarearem-se.
É um encontro de estranhos, de mim em mim, surpreso de me ver cativo duma mulher. Há quanto tempo o meu coração, a mente, o corpo estável, habituado a amar a única mulher que me amou sentidamente. Era assim, mesmo após a morte, sentia-me desligado de um qualquer enlace que se sobrepusesse ao único e grande amor de toda uma vida.
A imagem de Anamar impunha-se-me insistente, toda ela luz, sabores, cheiros, toda ela uma melodia única nos sons da voz, candidamente doce, pegajosa, a imiscuir-se nos poros da pele, a apelar um entendimento subtil.
Avisto o infinito do mar, de onde me encontro sobre a cama, a planta Tropical tombada sobre a parte direita da janela a toda a largura do terraço, com as portas ao meio, de correr. Há uma bruma à flor da água, flocos níveos como fumo de fogueira mal apagada.
O sol ainda por detrás da falésia, apenas o vislumbre dos seus raios uniformes que cortam a neblina, as flores que rejubilam amanhecidas, orvalhadas dos néctares nocturnos.
Foi uma noite de inquietação da alma, sem descanso, a mente febril dilacerando-se entre a memória e a realidade a procurar impor-se como uma evidência, a a afirmação de que o ser é sendo, o que ontem era um principio inabalável, hoje aparece em contornos de dúvidas instaladas porque houve uma emoção nos sentidos.
Visto o calção azul escuro que há muito jazia na gaveta e isso é um sinal que o meu ego se prepara para cultivar a aparência, a camisa de xadrez azul claro sobre fundo branco, os chinelos de cabedal abertos ao joanete sobressaindo dos meus pés que me parecem enormes.
A praia ainda semi deserta, esplanadas fechadas, o sol já sobre a falésia, rutilante de luz, caminho ao longo do paredão na direcção do Norte, à minha esquerda o mar de um azul fascinante, as ondas mansas, pessoas que se passeiam cortando a água com os pés, chapinhando-se e penso inevitavelmente nela, esbelta, os olhos doces sobre o meu corpo, o gesticular das mãos que compõem o explanar do seu ponto de vista.
À minha direita o que resta da mata de acácias, os parques de campismo, será que ela vem? Que impressão lhe terei causado? A suficiente para que se dê ao trabalho de vir de novo, na incógnita do que poderá acontecer, no aprofundar de questões da intimidade que aproximam ou afastam, que inibem ou despoletam emoções.
O meu olhar fixa-se, de súbito na silhueta de mulher sentada sobre a pedra grande , à entrada do esporão, o vestido tipo roupão avermelhado, os óculos escuros, os braços exímios descaídos sobre o corpo e o livro preso na axila do lado esquerdo dela. Sinto toda a harmonia do ser que ela é, ou que se me evidencia como sendo. Aproximo-me , o coração em palpitações de adolescente ante o seu primeiro namoro e penso que é assim sempre que há uma verdade nos sentimentos, um click de sedução consentida, a voz presa na garganta ressequida.
_ Anamar!...
Ela vira-se e deixa-me abismado sobre mim, tirou os óculos e toda a luminosidade dos olhos estavam patentes, como se tivessem estado a chorar, ou uma memória, um sentir que se tivesse soltado de dentro de si e o sorriso, aberto, agradado, agradável.
_João Maria!...
Abraçámo-nos, os seios dela de novo no meu peito, os nossos rostos encostados, tão próximos, perfumes alucinantes vindos dos lábios abertos, apelantes e eu arfante, a sentir o coração dela, a ouvir as batidas aceleradas do meu, tão próximos os lábios carnudos, flores vermelhas humedecidas e afundo-me neles, os meus lábios nos dela, dois toques, frescura e fogo de dentro e embrenho-me e ela embrenha-se, as línguas percorrem-se e ladeiam o interior da boca, as laterais, o céu da boca, salivas entrelaçadas de uma doçura quase extravagante, lábios com lábios, as línguas num devaneio possessivo, os nossos corpos colados, roçando-se, o meu sexo levantado, saltitante e julgo perceber o concavo desenhado do sexo dela sob o vestido, onde o meu sexo se acoita prazenteiro, despudorado, as minhas e as mãos dela percorrendo a costas em movimentos circulares, respiração contida, arfante e contida a espaços. Loucos.
_Perdoa-me!...o teu poder foi mais forte...
Os olhos dela tremelicaram, ainda mal refeita, passando a língua pelos lábios, voluptuosa, trémula a voz, entre sumida e grave, quase patética se vista de um outro angulo.
_Teria de ser um perdão mútuo porque eu também não me contive, foi um impulso...
Demos as mãos e caminhámos no sentido da esplanada. No areal os gritos agudos das crianças soltando as energias acomodadas desde a cidade. Atiram-se areia uns aos outros e chapinham na água que vem beijar-lhes os pés puros de meninos.
_Digo-te que eu própria me surpreendo. Venho de uma separação conflituosa, como te disse, um homem que se alterou a dado passo da relação, que se assumiu como se tivesse tomado posse de mim, exibia-me, a sua mulher, prendia-me até os pensamentos, o gosto de andar despida dentro da casa, ejacular-se dentro de mim e soltar-se, sem se importar com a minha própria satisfação, alhear-se dos meus anseios, dos meus projectos, possuir-me... _ Deixa-me possuir-te!..._ era como ele me dizia, ter-me para ele, dócil, submissa.
Aperto-lhe a mão pequenina entre a minha, macia a pele, os dedos esguios, os seios dela batem no meu braço de vez em quando com a oscilação dos corpos no andar e digo-lhe que gostava de ser dentro dela e de a sentir ser dentro de mim
Anamar volta-se e beija-me de leve os lábios.
_És um ser muito querido.
_Acabaste o livro?
_É um livro intenso, de culto pela personagem da mulher, das mulheres todas embutidas na Nany da sua paixão, saída do virtual, deixando-se tomar da paixão dela, ele, um homem velho saudoso da sua juvenilidade, ou da juvenilidade da mulher que é o seu amor de sempre, surpreendido de ser o alvo, o objecto do amor confesso de uma mulher muito mais jovem, bonita, com uma vida confortável, a questionar-se do porquê e do que fazer ao senti-la frágil, ansiosa de o ter como amante.
Anamar fala efusivamente do livro, da substância do livro, percorre os personagens, a entende-los à luz da sua própria imagem.
_E as cenas de sexo, alta madrugada toquei-me ...estou toda molhada...são cenas que saltam do livro e nos colocam dentro da cena, vivenciando-a, depois, toda a teia perversa que ela engendra para acabar a relação, a intriga em volta dele, fazendo-o acreditar que fora um devaneio da sua própria inconstância, o desprezo com que o foi destruindo até que não representasse mais um perigo para a manutenção do seu estatuto de mulher de bem.
E ele, louco, gritando na cidade, julgando que estava à beira do mar: " Nany, Nany!!!..."
Tomámos o café na esplanada, Anamar de costas para o mar, em frente dos meus olhos, o recorte do tom laranja avermelhado do vestido ou túnica de tecido leve sobre o azul forte do mar e digo-lhe que nos está a acontecer algo de imprevisto, que a estou a sentir como uma célula que brota de mim para fora e que se inclina para reentrar, num ir e vir diáfano que me atordoa que me faz sorrir.
_Estou como que numa euforia em que me apetece gritar, soltar gargalhadas intempestivas sem nada que as justifique, adejar sobre nós os dois, os nossos corpos revolvendo-se, como se te conhecesse há séculos, fazer loucuras, beijar-te, mostrar-te o meu corpo...
Ouço a sua voz melodiosa, o brilho cativante dos olhos, os lábios que se mexem, se mordem a sentir sensações dela, do interior dela, as mãos num rodopio de gestos que procuram completar as palavras, as pernas que se abrem e fecham, o corpo todo em movimento, um movimento que vem de dentro e de súbito, aquele cheiro antigo, há quanto tempo? o cheiro do interior do sexo, absorvente e digo-lhe.
_Podiamos fazer um almoço para nós em minha casa...
Anamar sorri, toda ela, o rosto, o corpo esbelto, um sorriso franco, abrangente, a inteirar-se do meu convite, a sentir que é o momento que secretamente ansiava, secretamente dela própria e faz uma cara preocupada.
_Aceito, mas quero dizer-te que estou no terceiro dia da menstruação.
Dito isto levou os dedos aos lábios e encolheu-se toda na cadeira, como se se desse conta que dissera um disparate, se predispusera a ter sexo comigo, se adiantara em ralação ao momento.
_Se não te incomoda eu adoro ser dentro de ti, menstruada, o meu sexo envolto no teu sangue que se purifica, o teu cheiro activo nascido do mais intimo. É isso, a menstruação altera o efeito sedutor de mistura com os cheiros da apetência sexual. Torna-os exaltantes a nos sublimarem num absoluto de amor.
Ela ri-se de novo, a alma em redor, a praia "deserta" num repente. Pego na mão dela e vamos...

autor:j.r.g.

10 comentários:

Maria Ribeiro disse...

Texto lindo, Direito de resposta! NARrativo ,com o seu quÊ de lírico e dramático. AS personagens, depois de um tempo, reencomtram -se na imensidão do amor que,afinal, não morreu de todo... OS cinco sentidos ,todos num confundidos, como diria GARRETT, são a prova ,física de que sem a parte da ligação espiritual, o mundo bem pode fazer por SER...
ABRAÇO DE LUSIBERO

Maria de Fátima disse...

Olá João, gostei muito de ler este conto dividido em 2 partes.Beijocas.

Underworld disse...

Em relaçao ao comentario que me fez: O passado prende-se a memorias, essa é a prisão invisível, que o deixa constantemente ser transparecido no nosso actual quotidiano, e o futuro concordo que não seja anunciado, mas cada gesto nosso contribui para o futuro, logo todos os nossos pequenos gestos e pequenas escolhas estão a ser o nosso futuro.

E quanto á "nanny" está bastante boa, optima descrisao, um excelente trabalho.

tem a palavra o povo disse...

Olá Maria Elisa.
É como eu sinto, uma honra, que me dediques do teu precioso tempo e encontres empatias no que escrevo da alma.
Abraço amigo

tem a palavra o povo disse...

Olá Maria de Fátima.
Os teus gostos mostram-me do teu romantismo. É bom ver-te sorrir por aqui.
Beijinhos

tem a palavra o povo disse...

olá.
Gostei que me tivesses dedicado um pouco de tempo. As palavras quando nos chegam, directas, permitem sentir nelas a pessoa que as escreve e eu sinto que és uma alma sensível que procura respostas, mas que tem igualmente respostas com as quais se confronta na complexidade da vida.
O passado é tudo o que vivemos e nos marcou, só isso ficou vincado na memória, as outras pequenas particularidades, por vezes bem profundas e marcantes efectivamente, desapareceram. Mas tu sabes porque sentes, que são essas as determinantes da nossa acção. O que nos regula o ser não é a memória, a evocação do acontecimento, isso provoca medo ou alegria,"e se volta a acontecer como então?..." mas o que está bem no fundo da alma, que não sabemos mas sentimos, detalhes que são a nossa essência, porque não fazemos nada sem cobertura, somos a imprevisibilidade da nossa inconsciência.
É um prazer falar contigo, instigas à inspiração das palavras.
Obrigado, também pelas palavras amáveis sobre o texto, NANY, onde pessoas que julgavam enterrado o passado, ou presas dele, ou nele, acordam uma manhã imprevista e se deixam ir acontecendo.
Saudações
um abraço de amigo

Graça Pereira disse...

Tive de ler a parte I da história para me situar e gostei. No meu blog também conto coisas do passado, reais, que aconteceram do outro lado do mundo. Pode haver pessoas que achem que seja uma "seca"mas o meu blog está e é uma missão. Tal como o relato da Nanny. Um abraço Graça

tem a palavra o povo disse...

Olá Graça Pereira.
É um prazer muito grande voltar a ter-te aqui e prometo que vou de seguida ao teu blog, ver as maravilhas com que nos presenteias.
Este Nany que te deu prazer ler, tem uma terceira parte que por motivos técnicos ainda não consegui colocar aqui, mas que pode acompamhar em :
http://neoabjeccionismo.blogs.sapo.pt.
Beijinhos de amizade

tem a palavra o povo disse...

olá, Underworld
Gostei que me tivesses dedicado um pouco de tempo. As palavras quando nos chegam, directas, permitem sentir nelas a pessoa que as escreve e eu sinto que és uma alma sensível que procura respostas, mas que tem igualmente respostas com as quais se confronta na complexidade da vida.
O passado é tudo o que vivemos e nos marcou, só isso ficou vincado na memória, as outras pequenas particularidades, por vezes bem profundas e marcantes efectivamente, desapareceram. Mas tu sabes porque sentes, que são essas as determinantes da nossa acção. O que nos regula o ser não é a memória, a evocação do acontecimento, isso provoca medo ou alegria,"e se volta a acontecer como então?..." mas o que está bem no fundo da alma, que não sabemos mas sentimos, detalhes que são a nossa essência, porque não fazemos nada sem cobertura, somos a imprevisibilidade da nossa inconsciência.
É um prazer falar contigo, instigas à inspiração das palavras.
Obrigado, também pelas palavras amáveis sobre o texto, NANY, onde pessoas que julgavam enterrado o passado, ou presas dele, ou nele, acordam uma manhã imprevista e se deixam ir acontecendo.
Saudações
um abraço de amigo

Domingo, 30 de Agosto de 2009 10H28m WEST

Parapeito disse...

... Senti as tuas palavras :)
Continuação de dias cheios de brisas mansas**