23/05/2010

TODA A MORTE É UM SEM SENTIDO


Hoje é Domingo
E chove
No átrio do hospital
Do lado de fora das urgências
A morte
Por entre gritos
Inflamados
De quem na vida
Perdeu alguém

 Vestidas de negro
Evocam os espíritos
Dedos tremem frenéticos
marcam números de telefone
gritam entre si
gesticulam
 encomendam a alma
enumeram qualidades
apenas qualidades

gritos pungentes
arrepiantes
de cada vez que chega alguém
do clã
sobem de tom
trazem crianças estremunhadas
sem saberem ao que vêm
desde cedo
aprendizes do ser

 clamam contra a impotência
evocam o absurdo dos deuses
traçam a história de vida
atrás da alma
e não acreditam
deitou-se vivo
que aconteceu
incrédulos
punhos fechados

entre os gritos do absurdo
vestidas de negro
lenços levantados
descobrem o rosto na saudade
onde não pairam sorrisos
braços levitando
em redor do corpo
riscam imagens
não lágrimas apenas gritos

 há um agitar dos corpos
em volta dos gritos
entoam cânticos
vão se chegando a família
o clã
sinfonia tétrica
que lembra o que a morte é
morreu o meu irmão
morreu

há um vagabundo
do outro lado da morte
ele sabe que ninguém gritará
na sua vez
e absorve
na avidez do momento
escolhendo entre as palavras
as que lhe servem
por antecipação

 as crianças brincam
um deles tem uma pistola
de imitação
quase indiferentes
apontada à morte
por entre os gritos
tiros à sorte
que entram e ficam
na memória

há uma palavra chave
ou várias
para recrudescer o clamor
cânticos subtis
palmas enérgicas
quando a dor esmorece
a alma agiganta o corpo
de dentro da memória
a alma

 é já uma onda de gente
de onde se destacam os assimilados
vestes modernas
calados
por entre os gritos
que formam uma plataforma
volátil
 onde me movo em surdina
intruso na alma da morte

a viúva sentada
como uma deusa fugaz
que todos veneram
abraçam incitam a lamúria
ante a evidência da perda
havia uma ronda da morte
neste Domingo
e eu tentava desviá-la
na sua voragem

autor: JRG

2 comentários:

Graça Pereira disse...

Há muito que não passo por aqui... Vim ver o que diz o povo e...deparo com este poema Impressionante... sem tirar nem pôr... é assim a ronda da morte... e o seu teatro á volta.
Sentido? Apenas por dois ou três...o resto é folclore...já passei por aí...
Beijo e um bom resto de semana.
Graça

tem a palavra o povo disse...

Olá Graça Pereira...é verdade que não passas, mas sinto que estou presente na tua alma como te sinto na minha...
vindas de ti as palavras de apreço ganham na dimensão de te saber sábia e frontal...muitos de nós passaram por este ritual da morte, mas na etnia cigana o rito é impressionante, assume aspectos de histeria que difere dos mais tradicionais para os assimilados...
Desejo tudo de bom para ti, querida amiga...
Beijos e sorrisos
joão