18/05/2009

MEMÓRIAS DA GUERRA - A CARNE E O CANHÃO

MEMÓRIAS DA GUERRA - A CARNE E O CANHÃO

Tinha os dentes escurecidos pela cárie ou tártaro, a falta de higiene, e havia dois espaços em falso nos de cima, intervalados por um dos incisivos, os lábios grossos, estatura baixa, obesidade acentuada, porque comia de tudo, o que lhe cabia do rancho e as sobras, o que mais ninguém queria, ou o que outros deixavam na marmita por nojo da refeição mal confeccionada. Uns olhos grandes, bonitos, inocentes, onde transparecia lealdade. O bigode era farto e quase lhe cobria os lábios. Mãos sapudas, calejadas de enxada, a testa enrugada, pele morena, tisnada e tinha apenas 20 e poucos anos.
Era básico. Ser básico, na tropa, é ser o último na escala de valores da hierarquia. É ser picaresco e ter direito a ser confrontado com a hilaridade de todos, mesmo os que, não sendo básicos, padecem da mesma insuficiência de raciocínio face às exigências técnicas e tácticas da missão em que estavam inseridos.
Tinha a função de ajudante de padeiro. Ser padeiro alterava por completo o seu estatuto. Ele sabia que o posto de básico era como ser pastor, jornaleiro no amanho da terra, aguadeiro entre os ranchos de ceifeiras ou cavadores de enxada.
O primeiro-sargento cooptara Manuel António para a secretaria, tinha imenso trabalho e o poeta sabia escrever à máquina, sabia digerir um ofício, responder às inquirições, fazer contas.
Manuel António, passo firme, cabeça levantada, o cigarro entre os dedos, contemplava a figura do básico e pensava que ele era o valor mais alto e genuíno de entre toda a companhia. Admirava nele o orgulho de ser padeiro, de querer ter estatuto diferenciado, a revolta com que se indignava por lhe chamarem ironicamente básico.
_Eu báseco, pá!!! Eu sou padeiro!
E agora, aquela noticia inesperada, o primeiro-sargento, os ares efeminados, bamboleando o corpo, as mãos pelo cabelo, como Nero, o Imperador louco, a convidá-lo para a secretaria.
Tinha ficado radiante que o capitão tivesse autorizado sob a indicação aquiescente do alferes. Para Manuel António, que sentia a estima de oficiais e sargentos, todos milicianos, contrários à guerra como ele, e sub-repticiamente desobedientes, ficar na secretaria era um luxo que queria usufruir humildemente para não acicatar invejas. Poder escrever à máquina, artigos e outras histórias que se aglomeravam por sair de si e a que os dedos, a caneta, não acompanhavam a velocidade das ideias fluentes.
Estranhamente ele que colaborava num jornal hostil ao regime, que se auto intitulava de comunista, defendia ideias consideradas subversivas, lia livros proibidos e estava marcado pela polícia política como possível activista a ter em conta.
Podia perfeitamente ser comparado ao básico porque ambos eram incompatíveis com a guerra e ambos foram colocados em áreas diferentes das que receberam formação.
A sombra do mangueiro no centro da parada, mosquitos irrequietos poisavam sobre o suor do pescoço e um sorriso abstracto de criança que os olhava indiferente.
_E tu Francês?
_Eu o quê?!
_Porque vieste, se estavas em França, terra livre, coutada de tantos que desertaram.
O Francês era de Vila Verde, um rosto simples, pacato, de homem bom. Tinha um sorriso que parecia pedir desculpa por tudo, por estar ali, por ter vindo, por não se ter deixado ficar.
_Vim porque tenho umas leiras de família e disseram-me que perdia tudo. Porque tive medo que me fossem buscar à força. Sou casado e tenho um filho que já mal me lembro.
Há um aquartelamento que é bombardeado todos os dias, um pouco longe e tão perto, ouvem-se as saídas de morteiro e o deflagrar das granadas, como uma cantilena rumorejante.
A figura frágil e sedutora de Alexandra interpôs-se de repente, como um mito que se entranha. Alexandra é um amor estranho e impossível de definir porque não sendo possessivo nem obsessivo é tão intrínseco que lhe dói estar ausente dela, do seu cheiro de quando acariciava o sexo e sentia a humidade de fluidos contagiantes, o perfume do interior da boca, de dentro dela, quando a beijava, se chupavam as línguas, o fogo dos corpos que estremeciam de sensações rítmicas. As mãos dela no seu sexo, os lábios que o beijavam, o nariz em carícias ao redor da glande.
Suspirou, nem dera pela pergunta do Francês que permanecia no ar.
_E tu Manuel António, porque vieste?
Há quanto tempo? a pergunta, ou que estamos aqui. Faz meses, anos...Quanto falta?...
Riu-se, os olhos nos olhos mansos do outro que sorria do mesmo modo aberto com que se punha a caminho da missão, carregado de granadas de morteiro. Recusando ser carne para canhão, mas indo...
_Por amor, amigo, simplesmente por amor

10 comentários:

bubok disse...

Bom dia J.R.G.

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Parapeito disse...

" Por amor, amigo, simplesmente por amor"
Com um motivo assim...que se pode dizer....
Um abraço*

tem a palavra o povo disse...

Maria Lobos
Boa noite amiga e dias felizes no parapeito de onde me vens visitar.
Na verdade há situações que só o amor a algo ou a alguém nos leva a viver, de outro modo socumbiríamos, talvez, estilhaçados em confrontos para os quais não tinhamos consistência, nem amor.
Beijinhos de amizade

Maria Ribeiro disse...

J.R.G.:finalmente consegui entrar!Pois bem:este seu texto,cheira-me a memórias dos tempos escuros das guerras do ,então, ultramar. tudo remete para marcas de dor, de insegurança, de necessidade de falar das coisas tristes dessa altura, com catarse.Eu vivi esses tempos, através do meu ex-marido que esteve em Nambuangongo e sei o quanto o trauma dos tiros ,das granadas, dos fogos nas aldeias o marcaram e me marcaram a mim.
É claro que todos vocês, no meio de uma guerra que não compreendiam, se agarravam às recordações mais íntimas da vida vivida com as vossas Alexandras, Isabéis, claras, etc...
De outro modo, sem recordações de doces momentos, tudo vos levaria à loucura!Muito teria para lhe dizer, mas não vale a pena provocar-lhe outras tristes recordações...além de que posso estar enganada...
Abraço de lusibero

tem a palavra o povo disse...

Gosto muito de Elisa, Maria Elisa, Maria Ribeiro a magia de amizade
lusibero sem Maria doce brisa
que nos traz da treva a claridade

Maria Ribeiro, leio as tuas palavras com enlevo, "Nambuangongo meu amor", todos temos marcas, os que estiveram e as que ficaram, também eu não fui exemplar nos primeiros três anos de casamento, mas tinhamos, por certo, um chip imanizado que nos colava para sempre e aguentamos, mesmo. depois de nós, quando sobrevieram tempestades cujos ventos não semeámos. E ainda cuidamos da 2ª geração que dá agora os primeiros passos.
Gostava de saber mais, uma vida assim, como me abres em pistas subtis, é um fascínio para a minha sede de conhecimento.
Bem sei que estou a chegar, mas presumo que nos vamos conhecer melhor, porque o que li no teu blog deixa-me a esperança de que as palavras criarão empatias que nos permitirão a partilha de saberes e vivências.
Acresce que és professora, diria que uma resistente entre dois fogos, dois lobies poderosos, o Ministério e os Sindicatos, no fim ficam os alunos que vão consumando o país que somos.
Tenho um site cujo link deixo abaixo que procuro rechear de valores na poesia, na prosa, na partilha das palavras.
Convido-te à visita e se for do teu grado, seria para mim, para nós uma honra que criasses a tua página e nos iluminasses com a ventura das tuas palavras.

http://maresiaspoetasportugueses.ning.com

Um beijinho de amizade
joão

Maria Ribeiro disse...

Com o maior prazer,amigo. Já tomei nota! olha que eu cheguei só em Janeiro... OBrigada pelas palavras lindas que me diriges!E deixa-me ser vaidosa:adoro o meu nome!
BEijito amigo de lusibero

Maria Ribeiro disse...

João:já registei nos meus favoritos o "maresias..."É brasileiro? Tenho imensos amigos do Brasil a seguirem-me e vou estudar mais este. Um beijo de lusibero

tem a palavra o povo disse...

Maria Ribeiro, boa noite amiga. Sobre o site, foi criado por mim e tem como objectivo a diversidade da lingua Portuguesa, em forma de poesia, prosa e documentários sobre a nossa aventura, de cada um dos povos que se revêem na Lusofonia.
Neste momento participam Portugueses e Brasileiros.
Um bom Domingo para ti
Um beijo de joão

lusibero disse...

JOÃO:já me inscrevi, mas não consigo escrever lá. Será falta de experiência?Mas é que nem a minha filha consegue perceber e ela anda no mundo virtual h´que anos!
BEIJO DA MªELISA

tem a palavra o povo disse...

Maria Elisa.
Estou muito contente que te tenhas decidido, e ansioso pela tua colaboração.
Quanto à inscrição, aquilo funciona por convites, manda-me um email para eu fazer o convite, talvez assim já funcione.
Beijo do joão