01/01/2009

A PRIMEIRA VEZ, o SOM!...

Recordo a minha imagem de menino, o corpo nu e o olhar triste sobre a areia negra da rua junto à casa. Em redor, o juncal de águas estagnadas, onde os girinos candidatos a rãs e salamandras se movimentavam apressados.
Galinhas cacarejavam por entre os patos deliciados com as poças de água que se formavam onde a areia enrijara, batida pelos pés de anos e anos, desde que se formara o bairro de pedra e cal, a substituir as barracas andrajosas, albergues de famílias numerosas.
Era Dezembro frio e nevava na Serra, longe, talvez na Guarda, Bragança...quando eu nasci, ia o sol a meio e berrei alto que me deixassem crescer, que haveria de ser grande e homem.
Dizem que deu trabalho arrancar-me do ventre de minha mãe. Terá sido por isso que a nossa relação foi sempre distante? Talvez ela quisesse uma menina, ou nada.
Cresci triste e timido, temeroso de tudo o que gerasse violência e dos mistérios da noite.
Tenho o sentido de ter amado minha mãe e queixo-me de me ter sentido mal amado. o meu pai era de poucos afectos. Trabalhava dia e parte da noite para ter melhor vida, ou termos nós.
Quando dei por mim tinha crescido, alinhei nos namoricos de rapaz, joguei à pancada, apanhei raposas na escola e aprendi a fumar como os homens, rapei os pelos das pernas e do púbis para que crescecem depressa e de raposa em raposa, veio o trabalho árduo.
Cresci timido, triste e mau amante do meu corpo, encovado no torax pela tosse da bronquite asmática ,curada a papas de linhaça.
Dezembro é o mês da estrela redentora, logo, o meu curso de vida devia mudar a todo o instante, porque eu tinha sonhos, eu adormecia agarrado aos meu sonhos, ser homem, ser pessoa, ser um dos guardiães do mundo. Defender todos os fracos dos poderosos sem lei, para quem a lei fora feita, logo a lei de Deus. "Não desobedecerás ao teu senhor".
Voltar à escola, reaprender, ler desde o começo de onde se deve começar a ler. o romance, o documento, a filosofia, o pensamento humanista, a história. sobretudo a história que nos permite redimensionar o presente. A repetição dos acontecimentos é uma evidência, não igual, o mesmo item ou quadro de apresentação, mas os pressupostos, as incidências, as razões e as causas, a perfidia insinuosa das teias qe se tecem e envolvem os protagonistas, as causas e os efeitos, cada vez mais devastadores.
Amar. Descobrir que amar era possivel, à medida que o amor por mim, pelo meu corpo, pelo meu pénis quando me masturbava, pelo meu cheiro, de mim, crescia e se fortificava em confiança, em poder...Amei profundamente de mim e para além de mim. Sentir que alguém que não eu, me amava o corpo, me amava as palavras soltas pela alma, que acreditava ser possivel viver comigo um projecto consubstanciado no tempo. E era um outro corpo além de mim, uma outra alma, a alinhar-se a ser, a fundir-se como um só sendo dois, assumindo-se como um só sendo dois, até ao fim...
Estou sentado sob a palmeira junto ao rio e retenho a memória que me escorre lentamente, ás vezes rápida demais, atafulhando-me de palavras sobrepostas que se perfilam por fim, dipostas ordenadamente.
E veio a guerra, o medo dos medos, tensão e o reafirmar dos valores que eram já uma fortaleza do ser. Preservar a existência, os rosto de um povo simples, completamente simples, os olhos negros na pele negra, as crianças, a magia do seu olhar interrogativo, as barrigas opadas, o sorriso inocente e crédulo e amar, amar sempre como um fim únio de chegar a um infinito, amar acima de tudo o que vou sendo, o que estou sendo e ir ganhando aos poucos o tempo, de dentro do próprio tempo, uma infima nesga de espaço. Não ter achado o homem qu procuro, será que existe? , mas trazer um novo elan por ter vivido a busca intensamente, sentido a metáfora do homem novo, absoluto, total.
Viver a mais bela história de amor. Saciar-se de sexo e fantasias libidinosas, realizar a utopia, os filhos, o sucesso pessoal.
A derrocada...
Ter vencido tantas coisas e derrotas pesadas, julgadas demasiado pesadas, querer dar um fim a tudo, apagar tudo sem recomeço, apagar simplesmente e definitivamente., para qe não conste
Definhar até ao limite do fim e ressurgir desse nada quase absoluto, de onde ninguém pensa ser possivel voltar. Soerguer-se, olhar o horizonte carregado de nuvens e descobrir o sol. Fazer-se valer...ganhar a luz e arrancar de si, do fundo onde repousa a dor, o saber, o ser de novo que é ainda sendo, porque não deixei de ir sendo, não se é, vai-se sendo.
Reformular aceitando a evidência do que já aconteceu e continuar a amar, a amar-se. Voltar a sentir esse dom maravilhoso do amor. As palavras enxertadas de amor, como se foram novas, vicejantes e a fazerem-se acreditar. Amar de novo, ainda. Sentir o desassossego da alma, a ferroada do abandono e deixar-se amar de novo e amar de novo, a fazer-se ao tempo, como se fosse do tempo que corre.
Deixo entrelinhas por preencher. Faz frio sob a palmeira junto ao rio, agora que o sol se escondeu para lá do horizonte do mar.
Sou amigo, amante, amigante, também de mim homem...
É Dezembro e faz anos que gritei...pela primeira vez.

J.R.G.