29/11/2008

CARTAS A UMA MULHER AUSENTE...A REBELDINHA

A lua, hoje, surgiu por entre os prédios longe na cidade, imensa de tamanho e escarlate. Era como se uma bola de fogo flamejante tivesse surgido do nada e avançasse na direcção de onde eu estava e se apoderasse de mim, dos meus sentidos de mim, reduzindo-me a esperança de ser eu o centro da gravidade dos acontecimentos que ao redor do meu corpo, me envolviam de fora para dentro.
Durante meses, talvez anos, escrevi-lhe cartas de a fazer regressar à vida que avidamente procurava e constantemente se desalentava de encontrar, de reconhecer como a vida que queria viver. Cartas que mantenho na memória activa, como se acabasse de as escrever, e ás quais não obtinha qualquer resposta. Acreditava que ela as lia, que lhe eram indispensáveis, que lhe transmitiam a energia positiva para sorrir. Para vencer a inércia em que enclausurara a alma.
Tudo começou, de nós, quando ela me disse que estava desesperada. Acreditara num homem, num projecto de amor para construir uma família, dera-se na sua totalidade e até engravidara o que fora uma alegria imensa por se realizar, ou ver-se na possibilidade de se realizar como mãe. Cumprir-se como mulher plena. O fogo da paixão, a juvenilidade do corpo na sua formosura, a casa comprada entre os dois, a decoração, o respirar os cheiros, os dele e os dela, entrelaçados como as ondas do mar. O orgulho de si, da sua congeminação de si, de como se criara em imagem indestrutível, de firmeza e carácter forte.
Amava aquele homem como um pedaço de si própria. E ia ter um filho com ele, de uma parte dele, dum acto de amor sublime, como se lembrava!...
Toda a infância em perdas irreparáveis da sua estrutura emocional. E agora, como um sonho até há bem pouco inimaginável, este projecto de vida a dois, quase a três porque o sentia de dentro de si, um embrião em crescimento, a evidenciar-se como ser absoluto, um ser ela em um outro. A alegria luminosa que a acompanhava desde que ao acordar, ainda quentes os corpos, ele a beijava e faziam amor ao começo da manhã.
Um dia sentira uma dor de enlouquecer. Uma dor de fora do mundo, de dentro de si mas fora. Dum lado de fora que teimava em ser dentro da sua alma. Sentira.se mal, desmaiara, perdera a noção de lutar por si, de se suplantar como sempre acontecera em momentos de perda de algo que julgava importante.
Quando acordou, estranhamente desavinda da sua racionalidade. Onde estava, o que acontecera?, que fazia ali deitada entre quatro paredes e mais dois rostos que a olhavam,
rostos amarelecidos, surpresos dela ali, pesarosos dela. E a enfermeira que a olhava igualmente, um sorriso nos lábios mortiços, sem a vida que um sorriso intui, a tentar animá-la a ela que , deitada ,sentia frio, um frio estranho sobre o quente das cobertas da cama, Brancas.
-Perdi-o!...
E estavam secos, os olhos, porque se recusava a chorar sobre si, porque se fortalecera contra todos os elementos. Secos mas tristes. E estava só. O tipo com quem trocara juras de amor, a quem se entregara com a alma em chamas de paixão, porque acreditara em tudo o que ele lhe dissera. Sim, desertara, dissera-lhe palavras dolorosas, infames, que se iria embora se ela não conseguisse dar-lhe um filho. Que era uma vadia que andara a foder com uns e com outros e agora não aguentava um embrião no útero. Chamou-lhe bêbada, que talvez se tivesse drogado, prostituído.
Ela sabia que não, que tudo o que fizera fora em busca de um projecto de vida. Trabalhava 12 horas por dia para ser independente. Tinha sentimentos de amor, tinha paixão por pessoas e por ser mãe. E tinha a sua rebeldia, dava-se toda excepto na sua rebeldia, que era como que uma espécie de essência da sua totalidade.
O ser rebelde, nela, era não se deixar possuir, não se deixar ser objecto de ornamento, de posse, de ser de alguém que não ela própria. "A minha filha, a minha namorada, a minha mulher". Ela também não tinha nada de seu a não ser o que sentia que era e mesmo isso, a cada momento, mudava, já não era no momento seguinte.Tinha um nome, uma imagem, um sorriso, uma reputação de frívola nos amores.
-Sim, perdeste-o. Tinha uma deficiência grave.
-Não precisa dizer mais. Apenas saber que o perdi, o meu bebé. Talvez seja melhor que assim fosse...
Eu tinha-te escrito uma mensagem talvez de esperança, sem saber nada de ti, apenas as palavras, curtas as palavras, que me tinhas enviado.

"Não sei se sonhei com as tuas vitórias se adormeci sobre a tua alma e todas as emoções que tive ontem já de madrugada. Acordei com uma sensação de leveza e quando fui ao espelho olhar-me de fora de mim para dentro, senti o fogo desta emoção que é ter-te desperta, gritante dos teus valores que são imensos e cheios de virtudes.
Escrevo provavelmente disparates, mas fiquei eufórico de ti. Consegui ver a tua imagem na crista da onda. É uma imagem bela, não sei se gostas, os teus cabelos negros esvoaçando ao vento e tu gritando, saiam da frente que sou rebelde, sorriso lindo nos teus lábios de menina e já tão bela mulher, e já tão sofrida mulher, mas o sofrer trás maturidade, não amolece, antes vivifica o carácter indomável de viver e enfrentar tudo com a coragem de uma mulher Capricorniana.
Haverá uma mulher Capricorniana? Um lado feminino que cultiva igualmente a persistência, a vontade de ser melhor, a ambição de ser melhor.? Um ir ao fundo e voltar porque está no cimo o que se persegue e queremos alcançar a todo o custo?
Saúdo o teu dia, a tua semana, os segundos, os minutos, as horas. Saúdo o teu cheiro, o teu sorriso, o teu corpo, a tua alma, os teus passos firmes e decidios.Saúdo a tua voz doce e mordaz quando tiver que ser, a tua alegria de ti, porque só tu interessas meu amor de amiga.
Chorei contigo, choro contigo esta tua alegria de viver.. Eu vivenciei momentos similares não há muito tempo, uma dúzia de anos. E fui o mais alegre e querido dos personagens da vida que vivi.
Um bom dia para ti amiga, amor de amiga, na onda vou a teu lado, do lado de fora de ti, para que ninguém traiçoeiro te desvie do rumo, enquanto quiseres que vá."

Escrevo as palavras na esperança de te encontrar que elas te encontrem receptiva, te dêem a certeza que estás acompanhada e embora não receba noticias de ti, acredito que estás a resistir, não aos elementos exteriores que te magoaram, que te magoam, mas um resistir de ti a ti. Acredito na tua juventude, na sabedoria que consubstancia todo o teu viver. E vejo-te como um símbolo perfeito de uma imagem de mulher que faz parte da mudança, duma nova era ou ordem de coisas, de valores, que se desenha nos horizontes da humanidade. Há um mar de gente à tua espera, de olhos postos no que fazes para sair do labirinto que te armaram, e como o fazes...
E nada, do lado de lá de mim, onde tu estás, onde penso que te agitas, individualista, a congeminar hipóteses que se coadunem com os projectos, onde falta sempre um qualquer elemento indefinido, uma falta rebelde, que se rebela contra a tua própria rebeldia. Insisto.

"Sinto todo o turbilhão na tua vida e queria ser um pilar. Uma âncora. Uma mola potente que te catapultasse para níveis superiores do teu ser mulher.
Sinto que estou do lado de fora do teu tempo, ainda que pudesse ser um tempo ameno para a tua alma perturbada. É demasiado brutal tudo o que envolve a tua existência, embora eu pense que é sempre possível vencer a resistência que de dentro nos determina a solidão quando se impunha a união de esforços concertados e com o único interesse de te ajudar à libertação da alma, pela compreensão dos fenómenos que te comprimem e sufocam.
Quero dizer-te que não gosto da forma como encaras a solução de ti enquanto menina e enquanto mulher. Penso que não deves isolar-te. Perder não é sair vencida, perder é natural quando se joga e tu jogas uma parte de ti. Ainda que penses que jogaste tudo, não acredites, é algo de ti que faz Bluff, nunca jogamos tudo e ficamos cá para ver. Viveste um quarto de século de vida e há mais três quartos por viver, vamos a eles. Não como amantes do corpo, mas como amantes da alma, tu e eu, na distância do tempo
Façamos uma análise desapaixonada, como se lêssemos a contabilidade de uma loja de antiguidades. Descobrir o fio da meada que .que fez surgir em ti um ser mulher diferente das demais. Fazer evidenciar de ti todas as virtude, e são muitas. Amiga és uma menina muito virtuosa. É preciso reconstruir uma nova imagem da rebelde, construa-mo-la.
É preciso erradicar todos os conflitos que navegam no teu sangue e te povoam a alma e o corpo. erradique-mo-los.
Linda menina, amiga de mim. Não quero que percas o sorriso. Podes perder quase tudo, mas o sorriso não.
Estou aqui. Não posso partir ao teu encontro e no entanto parto, desta forma igualmente sã e onde podes responder aos teus anseios, desnudar-te dos teus mistérios. Vais ver que são tigres de papel e que tu és mais poderosa. Fazes parte da nova ordem, quero que faças...
Amiga, aceita a minha amizade. Sê rebelde."

A Lua cor de fogo está agora sobre mim. Posso ver o recorte das montanhas, ou dos vales ,saliências da evidente beleza intuída de um rosto belo de mulher. Lembro-me de antes de sabermos que eram montes, crateras, depressões e imaginávamos nela o rosto da nossa amada, ainda antes de sabermos, ou dizermos que a Lua é mentirosa porque não tinham sido inventadas as palavras.
Digo-te ainda que tu és uma solução do problema, como a água pura, o alimento das almas inquietas, uma parte da essência com que se constrói a paz e o amor.
Ficarei à espera, amiga, à tua espera, dum sinal teu, do infinito de onde te sei ou sinto que sei...

11/11/2008

SEI QUE NÃO SEI, MAS ATIRO PEDRAS...

Sei que não sei, mas atiro pedras cruzadas, sem rumo certo, nem alvo fixo, como quem pergunta, na salada de respostas que me interiorizam, se há um lado certo, ou se apenas um momento certo, uma conveniência de grupo, para determinar a justeza dos acontecimentos.
Hoje sei, saberei?..., que nenhum homem é suficientemente importante, ou capaz em si próprio, para se afirmar como a evidência de todos os outros, como a esperança, como o condutor das vontades de um universo maior que aquele que ele é na realidade, como o salvador ou o guia da desesperança, nem para ser aceite como tal.
A análise das leis do Universo Humano pode ser feita através de um único ser, mas ele,ou isso, não determina que ele seja mais superior que qualquer outro, enquanto individualidade. Porque será sempre uma análise subjectiva, de ele enquanto potência de si próprio e ou ao serviço de outros interesses, manipulado ou engajado ou principescamente pago para direccionar o seu discurso na direcção pretendida pela entidade ou grupo de entidades, que detém o poder real da matéria sobre o espirito.
Poderei dizer, igualmente, o mesmo pressuposto em relação aos que pretendem direccionar o rumo do espirito sobre a matéria, com mais probabilidades, até, de acertar, porque esses devem o seu sucesso comprovado, hoje decadente, à custa da afirmação dos outros, dos da matéria, na esperança de nos submeter pela espiritualidade.
Teremos de começar pelo homem e o circulo amplo da amizade,ou da empatia psíquica e ou hormonal, ou pela força dos músculos ou da violência congénita, ainda no banco da escola, quando ele se destaca pela facilidade da aprendizagem e a sua transposição para a realidade, exteriorização de sentimentos que captam a empatia geral, ou de um número considerável de condiscípulos e mestres.
A sua luminosidade exposta granjeia antipatias em outros grupos. E aí, ou ele se rodeia de um grupo forte que o adula e protege, que se serve da sua mais valia intelectual e o condiciona na sua liberdade total, ou se reduz, progressivamente, a uma anónima progressão subjectiva da sua totalidade. Seduzido por si próprio, muitas vezes é ele que se deixa enredar nas teias complexas das relações entre pessoas e grupos, porque cada pessoa é um Universo, e um conjunto não forma forçosamente uma unidade, mas um agrupamento de individualidades em disputa por cada afirmação de si próprio, ainda que pareçam concordar com a ideia geral, ou com o elemento que lidera o projecto ou ideia. Há uma aparente unidade de contrários, quando o fim em vista é o poder real, ou a parte dele que interessa em determinado momento de tempo.
O líder é apenas um personagem que, mercê das suas qualidades estéticas, da sua maleabilidade face aos poderes de facto, se propõe ser o cabeça de cartaz de uma fantasia de poder. Ele destaca-se pelo que diz e a forma como o diz, não pelo que faz, porque efectivamente ele não pode fazer muito do que se propõe em propaganda. O líder é um tipo de homem flexível na sua aparente inflexibilidade. A máscara do carácter cai quando a rigidez dos conceitos se abate sobre si próprio.
Quando eramos crianças, há uns anos atrás, quando nos cerceavam a vontade da descoberta com a palavra e a imagem de Deus. Quando nos amordaçavam com os castigos corporais e psicológicos, nos impunham a austeridade dum chefe implacável ante os nossos erros, tínhamos medo de tantas pequenas coisas que nos habituámos a engrandecer, como um papão a evitar. Um dirigente do estado era como que o dono de todos nós e ele era-o por vontade de Deus, logo , devíamos-lhe obediência cega. E eles acreditavam no seu poder sobre nós quando nos viam curvar ás suas ordens e decretos. E abusavam de nós, da nossa credulidade até um limite que só eles julgavam saber, o da nossa resistência ao fim da passividade das almas ordenadas em obediência a Deus.
Poderemos dizer hoje que o mito de Deus acabou, que toda a trama dos poderes, dos medos, se desmoronou e o homem se vê, como há milénios, de novo só, mas mais sábio,mais só e sem conhecer o seu rumo , nem a razão de ser da sua sobrevivência enquanto animal de "inteligência superior".
Hoje sabemos que o homem de inteligência superior, que aproveita as experiências acumuladas para as transformar, criar ou recriar em favor do nosso pretenso bem estar, não é um imediatista, nem lidera qualquer causa humanitária, que é a essência dele próprio enquanto sábio.
O poder é de lobies, desde logo no cimo da pirâmide do poder, mas igualmente em todos os campos da nossa existência, mesmo no trabalho, os sindicatos, mesmo no local de emprego, o grupo dos que adulam o chefe, mesmo na amizade, os intriguistas, mesmo no amor, os convencidos da sua materialidade, mesmo em cada um de nós, o conjunto das bactérias que num dado momento, nos anulam a imunidade adquirida.
Isto para dizer que a vitória de uma qualquer individualidade numa eleição Nacional ou mundial, não é a vitória dum preceito, mas apenas de um conceito. Ele obedece a regras estanques que o cerceiam na sua acção. Ele é um produto do marketing criado para promover produtos e o homem enquanto produto a consumir por outros homens. Tem qualidades a prazo, desde logo o de comunicação. Mas as palavras esgotam-se em discursos perante a paralisia da acção e o desencadear das crises do conjunto.
As crises mundiais, podem ser vistas um pouco como as pragas de Deus aos egípcios, deixaram apenas de ser sete. E são criadas para movimentação cíclica dos grupos de poder, para que possam aparecer os seus produtos de nova geração, como a solução salvadora das nossas inquietudes. E para que nos aquietemos na nossa sede de mudança, de querermos ser tidos em conta.
Insisto numa direcção, não tão rígida que se queira impor, mas reflexiva ela própria, de dentro e de fora da ideia: com a queda do mito de Deus e do papão, o comum dos homens despertou, procurou saber mais da sua história, rebuscou na essência do seu ser reminiscências das origens, abdicou do seguidismo de lideres e procurou assumir-se como líder de si mesmo, é uma procura que persiste, em cujo centro evolutivo estamos a viver os momentos da mudança. Extinguem-se os resquícios da submissão, tanto se chama ladrão ao que nos rouba presencialmente, como ao que nos encurta o orçamento no silêncio dos gabinetes. Perdemos o medo. Aceitámos a emancipação da mulher, como um dado adquirido, uma evidência tão afirmativa que pasmamos de a ter permitido. Ainda há quem apelide de traição quando apenas assumimos uma expressão sentida do nosso amor a uma causa. Mas isso é o desespero da desesperança.
O homem aprende-se de si próprio e ergue-se majestoso na sua humanidade de novo tipo, a requerer a formação de um novo lóbie Universal, o lóbie dos sábios, não dos catedráticos emplumados em conceitos estereotipados da realidade , que não o têm como fim, a ele homem,. Dos sábios mesmo, os humildes que não querem ser tidos como superiores, que legam as suas ideias sem recolha de fundos, para que sejam moldadas ás conveniências dos que se julgam hoje imortais e tudo detroem, a fauna e a floresta, o ambiente e a paz salutar entre tudo o que respira.
Esse lóbie dos sábios, que terá em conta o homem em si mesmo e o que de fora dele o sustém enquanto membro de um Universo complexo, despretensioso de poder, utilizando a sabedoria como arma única de pacificação explosiva está na crista da onda da mutação que se desenha no horizonte do tempo.

07/11/2008

UMA HISTÓRIA DE NATAL!...

O AMOR DOS SIMPLES...
I
Nasceu ao quinto dia num mês frio, Janeiro, daquele ano de sessenta e era o terceiro filho da família que já tinha um casal e que se projectava em quantos a vida lhes proporcionar, como dádivas de Deus e frutos de se amarem nos corpos e nas almas.
Cresceu feliz, até ao dia em que o pai sucumbiu a uma cirrose galopante o que fez com que se alterassem os destinos de todos eles, interrompendo estudos e projectos sonhados. Porque a vida é sonho e o sonho acrescenta vida .
Carlos Alberto era um rapaz elegante, altura média, cabelos e olhos castanhos, olhos leais, sorriso nos lábios e sempre amável para os amigos e os colegas do trabalho que precocemente tivera que abarcar. Tinha uma paixão e um sonho que o acompanhava de menino, a descoberta de como os brinquedos electrónicos se moviam ao simples toque de um botão, daí a todos os aparelhos que faziam parte do seu quotidiano, uma curiosidade para descobrir o principio e o meio da ciência electrónica. Desmanchava aparelhos, reconstruía e foi ganhando amor a essa forma de recuperar aqueles que o tempo e o uso colocara fora de serviço. Fez até um curso de electrónica por correspondência, que lhe trouxe bases importantes para as suas aventuras de descoberta ao funcionamento dos mecanismos.
O trabalho de estafeta que fazia na empresa, não era de todo monótono. É certo que via quase sempre as mesmas pessoas, mas foi-se habituando a descobrir que cada momento era diferente, como se as pessoas mudassem de dia para dia, de instante para o seguinte.
Conheceu uma jovem por quem se enamorou, uma jovem atrevida, bonitinha, mas fácil na forma como se dispunha à partilha das intimidades, ter sexo com ela, não foi um deslumbramento. Ficou-lhe um vazio para o qual não encontrava resposta, como quando um aparelho tinha tudo para funcionar e ao carregar o botão, não acontecia nada...
Naquele dia ao entrar no escritório, distribuindo bons dias pelos que ia encontrando, parou de repente, sentindo um calafrio estranho por todo o corpo, sentindo-se preso de uns olhos castanhos, uma pele clara e aqueles cabelos compridos, castanhos como os dele. Linda, linda, linda, mas que mulher!!!...pensou e dirigiu-se a ela para a saudar.
_Olá princesa! És a nova telefonista, ou os meus olhos estão noutra galáxia?
Ela, tímida e lisonjeada por tão principesca saudação a que nunca fora habituada, presa, num primeiro instante, naquela figura galante de olhos tão brilhantes como nunca vira em outro homem. Embora, filha única, tivesse recebido todos os mimos que se podem imaginar
_Sim, sou a nova telefonista, muito prazer. Chamo-me Clara Branca das Neves. E o senhor, quem é?
_Qual senhor, sou apenas um colega e estou encantado por te conhecer, por te sentir tão menina num corpo formoso de mulher, vais ver que nos iremos dar bem. Sou o Carlos Alberto, mas os amigos tratam-me por Carlos.
Ficaram a olhar-se, por momentos e foi ela quem primeiro desviou o olhar, numa timidez inocente, para se dedicar ao atendimento telefónico.
Carlos passou todo o dia com a imagem de Clara no pensamento. Uma figura de menina dócil, mas convicta do que pretendia, bonita, a voz sedutora, as maminhas harmoniosas sob a camisola de lã de cor rosa debruada a azul na gola junto ao pescoço, deixando este a descoberto, alto, a pedir beijos e devaneios que povoavam a sua mente. Vestia calças ele preferia ver-lhe as pernas, talvez até sentisse o cheiro emanado do seu corpo.
Carlos e Clara, brincaram com as palavras, ele galante, ela difícil, teimosa em reconhecer que era amor o que se vislumbrava das conversas amigas em crescendo de ansiedade e de fervor das almas enamoradas. Até que ele se decidiu a tomar a iniciativa.
Naquele dia acordou com a ideia de avançar para a consolidação desse sentimento que o absorvia na quase totalidade do seu ser e que sentia nela, como que a convidá-lo a entrar na sua vida, pela porta grande da frente, com decoro e cumprindo toda a tradição em que foram educados.
Carlos comprou um lindo anel de noivado. A caixinha era grená, de veludo, e quando a abria, o brilho das pedras preciosas ofuscavam-lhe os olhos e era também a comoção. Sim,um homem também chora, quando o momento é o do grande amor da sua vida.
Clara não sabia o que dizer naquele momento em que ele, de mãos trémulas apertando a caixa, a voz segura e quente:
_Clarinha, eu amo-te. Aceitas casar comigo?
Toda ela corou. As mãos inquietas, os olhos luzidios, os lábios entreabrindo-se num sorriso incandescente, o coração a 100 há hora como ela gostava de dizer, como o sentia há muito sempre que o via a ele, o seu Carlos.
_Sim, Carlos, eu amo-te muito e aceito casar contigo, mas primeiro vamos conhecer-nos melhor, namorar.
Ele disse que sim. Com a cabeça, com todo o corpo que se aproximou dela e numa manifestação súbita, ou esperada, deu-lhe um beijo ao de leve nos lábios carnudos e húmidos e sentiu que os corpos, o dele e o dela tinham estremecido, como se um choque eléctrico tivesse ocorrido e os aproximasse em correntes de afectos sublimes.
Em volta deles, por detrás do momento superior que viviam, os colegas aplaudiram, com palavras de parabéns e desejos de felicidade.
II
Durante cerca de quadro anos namoraram em edilicos momentos de absorção de si próprios, um no outro, com birras e amuos, seguidos de pazes feitas com mimos e outras fantasias, passeios de mão dada junto à foz, tentativas de sedução dele, para que fizessem amor, unissem os sexos numa evidência de amor que sentiam, do interior de si, ás vezes violentos, os desejos, os anseios, o cio de cada um, o cheiro indutor que se exalava dos corpos numa emanação natural que os sentimentos fortaleciam e se testavam à rigidez dos principios.
Clara fazia questão de casar virgem. Era um sonho de menina, podiam beijar-se, envolver-se em afagos, podia até mexer-lhe nas maminhas, beijá-las, mexer-lhe no sexo, beijá-lo se quisesse e ela faria o mesmo com ele, o que lhe desse prazer dela, de estar com ela, mas sexo com sexo, fazer amor, só depois do acto solene do casamento.
E ele aceitava, ardendo de desejo, mas aceitava, porque sentia por aquela mulher um amor profundo, um sentimento de respeito por tudo o que nela era um simbolo de pureza. Aceitava que fosse ela a decidir, era uma manifestação da sua, dela, maturidade, ante os desvarios infantis dele, homem, a pensar apenas na sua satisfação libidinosa.
Chegou o dia do casamento.Um primeiro de Agosto quente que marcaria para sempre as suas vidas em comum. O nervosismo e a alegria de mistura com os sentidos da enorme responsabilidade do acto que iam consumar e de finalmente puderem dar azo a toda a imaginação dos corpos em conluio para a construção da sua felicidade. Entrar nela e ela senti-lo na sua totalidade, no seu corpo.
A festa reuniu as famílias de ambos, e amigos, em alegre convívio onde o comer foi farto e a alegria esfuziante se contagiou de uns para outros, até que a hora do voo se aproximava, para os levar à Madeira, onde projectaram a lua de mel, impondo que partissem.
A lua de mel na Ilha da Madeira foi paradisíaca. A Ilha é um paraíso e rodeada de mar que eles tanto amavam, foi um cenário maravilhoso que os envolveu . Fizeram sexo a noite toda, em explorações dóceis dos corpos e das sensações produzidas. Ele, mais experiente, foi-lhe ensinando do que sabia. Ela ,plenamente confiante do seu amor, deixando-se conduzir, confiante e absorvendo todas as delicias de ser amada até à exaustão. Juraram amor eterno e fidelidade aos principios do projecto comum que agora encetavam. Foram doces delírios das almas apaixonadas.
Compraram casa, na sua cidade, o Porto, para viverem, suficientemente grande para a prole que se perspectivaram ter.
Clara queria ser mãe. Carlos ansiava por ser pai. Ambos faziam projectos para esse evento maravilhoso que os extrapolaria para a eternidade. A vida fluía, simples, por entre as dificuldades que surgiam dia a dia, pequenos nadas que os enervavam, problemas das famílias de origem para cujo entendimento apelavam constantemente ao amor que sentiam um pelo outro e por si próprios enquanto parte do outro, para se entenderem, para se continuarem a amar.
Foi ela quem sugeriu que fossem ao médico, que fizessem exames, para saberem a razão de não engravidar, se havia uma falha genética ou apenas biológica, se era possivel emendar o que estivesse errado. E foram.
Os resultados dela eram animadores, nada obstava a que tivesse filhos, ser mãe. Carlos, que tivera a coragem de se submeter ao teste, ao contrário de tantos outros, que sempre consideraram que o problema de gravidez era sempre da mulher e que quando elas, após um curto tratamento, apareciam grávidas, exaltavam as suas razões, de como estavam certos, sem cuidarem de por em causa se o filho era efectivamente deles ou de um outro a que a mulher cansada de se sentir desprezada, acorrera numa conjugação de afectos para ser mãe.
Sentiu que o mundo lhe caía em cima quando os resultados lhe trouxeram a evidência da sua infertilidade. Chorou, angustiou-se, sozinho na penumbra de uma casa de banho pública, onde se refugiara, como se sentisse todo o peso da multidão da rua, como se todos os olhos o apontassem como a causa e o efeito da sua nulidade procriadora.
À noite, no sossego da casa grande, Carlos e Clara discutiram a nova realidade, partindo do zero, ele colocou tudo à disposição da mulher amada. Podiam divorciar-se e ela encontraria um homem que a estimasse e lhe desse a possibilidade de ser mãe. Clarinha dizia que não, enroscando-se no corpo dele, á procura dele, do todo dele que se esvaía nas palavras. Podiam tentar a fertilização in vitro recorrendo a dador anónimo. Clarinha, que não, ser mãe só através dele, o seu amado Carlinhos. Ele insistia com soluções que ela podia ter um amante, de entre um dos amigos com quem simpatizasse mais, só por uns dias, até engravidar. Clarinha que não, que ele era louco, tolo, que perdera o juízo, ela aceitava não ser mãe, sem traumas. Era a vontade de Deus. Se Deus os juntara e Deus sabia que o sémen dele era infértil, ela submetia-se dócilmente à vontade de Deus. E abraçaram-se com ternura, beijaram-se, agarraram-se das palavras e dos sentimentos que deles saíra em votos de amor e fortaleceram-se na nobreza das suas decisões. Não seriam pais, nem biológicos nem afectivos. E selaram-se em sexo, como nunca até então, num frenesim de amantes na doce loucura do amor.
III
Clara conheceu um homem mais velho de quem se tornou amiga. Apresentou-o ao marido e falaram de generalidades. Era um homem de palavra fácil, palavras sedutoras que atraíam imagens de sonhos inventados. Ele falava de tudo com naturalidade, de sexo, de amores, infidelidades, de prazeres que a libido construía sem que a pudéssemos controlar. Falava de aromas e sabores, de amores absolutos e ela, Clarinha, adorava ouvi-lo, de se confrontar consigo própria e com o seu amor próprio, que reafirmava a cada teste de Anastácio Bandarra, era assim que se chamava este amigo, que viera do sul com a intenção de se fixar no Porto, caso as suas ideias se consolidassem, se materializassem em alguém predisposto a aceitar as suas teorias de vulnerabilidade da alma, quando o corpo insiste para que se completem os ciclos do absoluto, no amor e na vida em amor.
Carlos Alberto tinha plena confiança em Clarinha, nem se importava que ele, Anastácio Bandarra, a tratasse familiarmente por minha querida amiga, ou simplesmente por querida Clarinha.
Acresce dizer que Carlos Alberto tinha concebido um dispositivo electrónico capaz de captar a grande distância imagens e sons, ainda que difusos e que colocara um em cada salto dos sapatos de Clarinha, era um sonho a realizar-se.
Não que a quisesse controlar, mas era a única possibilidade que tinha de testar o seu invento, e não dissera nada para não estragar a surpresa que lhe faria neste Natal, com as gravações de todos os passos que ela dera.
Anastácio Bandarra tinha uma fixação teórica em Clarinha, pela sua personalidade teimosa , mas dócil ao sentido das palavras, como se fosse uma contradição, um absurdo de ser e não ser, pela sedução do seu olhar e do seu sorriso, pela beleza do seu todo de mulher e considerava um desafio importante que ela se recusasse a ser mãe por amor ao seu marido. Era um homem a caminho dos sessenta anos, charmoso, cabelo grisalho e pele morena, galante no trato e quente nas palavras, que direccionava com precisão no rumo certo do que pretendia.
Ele convidou-a para saírem, num dia em que Carlos resolvera ir assistir a um jogo de Futebol que prometia grande excitação e Clarinha recusara acompanhá-lo, por não se sentir motivada para o evento.
Falaram da natureza, do mar, de países distantes, das relações entre homens e mulheres, de amor e de amizade, de amor de amigo, amor da alma que não tinha a necessidade de amar o corpo, de ter do corpo a fruição total ou abstracta.
_Sim, eu sinto uma grande amizade por ti, a que poderia chamar um outro tipo de amor, que não o que sinto pelo meu marido.
_E serias capaz de me beijar?
Clarinha corou e sorriu, olhando-o nos olhos e agarrando nos ombros dele deu-lhe um beijo no lado esquerdo do rosto.
_Já dei!...
Ele riu-se com gosto, gargalhou durante segundos entre sorrisos e palavras inteligíveis.
_Assim não vale, miúda querida. Eu dizia na boca, nos lábios, molhados pela língua, chupar a língua.
_Nunca beijei com a língua, apenas encosto de lábios, o meu Carlos não gosta. É tolo, mas eu respeito tudo do meu Carlos, o meu amor..
Anastácio Bandarra olhou surpreso a naturalidade daquela mulher que estava com ele, que ouvia dele as palavras e não desarmava de amar o seu marido, onde outras, carentes de fantasias eróticas, se deleitariam por envolver-se num romance de desvarios amorosos.
_Aluguei aqui uma casa, queres ver?
_Sim, não me importo.
Clarinha acreditava na sua intuição. Sentia que por vezes era demasiado crédula, alguma ingenuidade fora de moda, mas não se dera mal até então, se bem que neste momento, aquele homem era quase um desconhecido. Tinham-se falado à distância e era praticamente a segunda vez que se encontravam. Sentia sinceridade naqueles olhos, ainda que por vezes malandros, atrevidos, mas pareciam-lhe leais.
Anastácio Bandarra fechou a porta à chave, retirando-a da fechadura. Era um rés do chão alto, com grades nas janelas e com uma vista soberba sobre o Douro.
_Que tomas?
_Apenas água. Tens aqui uma bela casa!...E a vista é linda.
_Sabes, Clarinha, trouxe-te aqui porque quero dar-te todos os prazeres que ainda desconheces, chupar-te a língua em beijos ardentes de sedução, beijar-te o sexo húmido dos fluidos das sensações que te faço sentir, penetrar em ti no auge quase absoluto do prazer de dois corpos que se interiorizam, atingir o absoluto pleno dos corpos exaltados pela libido e fazer-te ter um filho meu, nosso que criaremos longe. Numa Ilha, se gostas de ilhas que pode ser a Madeira, ou nos Açores. Ou numa outra cidade, Nova Iorque, Londres, Paris ou Barcelona. Sou rico, viverás como uma princesa, serás mãe. Ser mãe.
As palavras sussurradas de Anastácio Bandarra, não a fizeram desviar os olhos do seu Douro amado. E foi dizendo, com a maior naturalidade, como se não estivesse refém de uma alma, ou pensamento, de homem alucinado por um objectivo em que ela era a razão.
_Mas sabes que só faria tudo o que dissestes se fosse com o meu marido. Amo muito o meu Carlos, de uma forma que não sei bem como explicar. Estamos casados há dez anos... Quando o vejo, ainda hoje, o meu coração acelera a 100 à hora. Contigo, só se me forçasses, amarrando-me, me violasses, me matasses e devassasses o meu corpo inerte. E eu não acredito que fosses capaz de o fazer. Sou tua amiga, só te quero como amigo...
Anastácio Bandarra olhou de frente aqueles olhos castanhos, límpidos, leais e ternos, onde toda a doçura de um coração bom se espelhava.
Alguém bate à porta com estrondo.
_Clarinha!...Estás aí, meu amor? Estás viva?...
Era uma voz ansiosa, aflita. Angustiada que repetia as pancadas na porta e os gritos que exigiam uma resposta rápida, antes que arrombasse a porta com a força que um homem vai buscar nestes momentos, vá lá saber-se onde .
_Estou aqui, meu amor, meu Carlos querido, não me aconteceu nada, não se passa nada.
Clarinha correu para a porta e apanhou a chave que Anastácio Bandarra lhe estendeu, abrindo-a e recebendo nos seus braços o corpo amado.
Carlos Alberto, o rosto congestionado pela angústia e a raiva, afastou-a da frente e brandindo uma faca de cozinha dirigiu-se para Anastácio Bandarra que se encolheu a um dos cantos da sala. Clarinha gritou-lhe.
_Não!....Carlos, meu amor, não faças mal ao nosso amigo, estávamos apenas em amena cavaqueira amiga. Não se passou nada de estranho. Apenas as palavras. Mas como descobriste a casa?
_Não se passou nada e estão aqui fechados? Ele queria por certo violar-te. Eu acredito em tudo de ti, que não vieste de livre vontade, mas ele...
_Vamos para a nossa casa, explicar-nos-emos melhor.
Clarinha aproximou-se de Anastácio Bandarra e deu-lhe um beijo sobre os lábios.
Saíram ambos, Clarinha e Carlos, de mãos dadas, serena ela e ele ainda inquietado pela ansiedade da busca e pela emotividade do encontro.
O carro parecia voar. Ele olhava-a docemente e ela retribuía com o seu olhar apaixonado de menina.
Já em casa, na casa grande que compraram com as economias de cada um, sentaram-se de frente , os olhos amantes de cada um em particular e do todo que são como um só.
_Foi apenas um teste que Deus me quis fazer. A ver, talvez, se estou pronta para mais dez anos de amor profundo com o único amor da minha vida, tu, meu Carlos adorado. E vai ser Natal...E tu? Como me descobriste, meu amor?
Carlos olhou-a surpreso, os olhos toldados pela comoção do momento, acreditando tudo dela, bebendo tudo dela, ele que acreditava que a mulher é que é o sexo superior, ou deveria ser. Descalçou-lhe um dos sapatos.
_Sabes Clarinha, meu amor, inventei um mecanismo que procurei testar em ti sem o saberes. Aquela maquineta que vês ali é um difusor e receptor de sons e imagens, com gps, ouço as palavras e sei sempre onde estás, se te acontecesse alguma coisa, como um rapto. A transmissão é feita através desta espécie de chip que introduzi no salto dos teus sapatos.
Clara Branca das Neves levantou-se e abraçou-o com paixão e êxtase.
_Meu amor, Deus testou-nos na totalidade da nossa pequena grandeza face a Ele e saímos ambos bem desse teste maravilhoso. Amo-te sempre!...Meu Carlinhos querido!...Feliz Natal!...
_Amo-te sempre, minha doce mulher!..Minha Clarinha amada!...Feliz Natal!...
E amaram-se noite dentro, já Natal, prendando-se de inusitadas emoções, num pleno absoluto de duas almas e dois corpos consubstanciados na plenitude infinita do amor.

Autor: J.R.G.

É o que me proponho. Escrever sobre vidas anónimas que valem as luzes da ribalta ou a fixação histórica e que traduzem a essência de um homem, de uma mulher. Uma oferta de Natal ou aniversário.
Escreverei por encomenda, preços a partir de 60 Euros, de acordo com extensão e pesquisa de documentação. Mas com a paixão que o percurso proposto me suscitar.
Aguardo a vossa proposta.

J.R.G.

01/11/2008

AO MEU NETO - COM AMOR!...

São 50 centímetros de gente, que se movimenta em pequenos gestos de abrir e fechar de mãos, esticar os pés, bocejar, caretas que querem talvez afugentar espíritos que procuram entrar na sua alma iniciada.
Emite sons que já são uma comunicação e olha-me nos olhos, um pouco estranho de mim, como quem quer inteirar-se do que sou, se sou, quem sou. Enterneço-me de o olhar, de o sentir e levanto-o nos meus braços, aconchego-o ao meu peito e ele deixa-se ficar. Aceitou-me. E é , somos, já, uma evidência um do outro
Coloco um dos meus dedos entre uma das suas mãos pequeninas, os dedos dele esguios, longos, e a mão fecha-se sobre o meu dedo, numa primeira saudação, a dizer que me aceita, que podemos vir a descobrir juntos outros caminhos...
Fecha os olhos e dorme enquanto lhe observo os pequenos movimentos com que procura fixar-se na vida. E relembro nele os meus filhos, os traços que se afirmam indeléveis, os lábios,o mexer dos lábios, o queixo saliente, mas sobretudo a expectativa do ser que irão sendo, que foram sendo e que são hoje e que ele, esta pequena parte de mim, irá ser, sendo, a cada momento.
Olho os seus cabelos negros e a penugem que o cobre nas partes visíveis do corpo. E penso que seria assim, talvez tivesse sido, quando tudo começou, e as crias nasciam num qualquer recanto da natureza. Os pelos como vestimenta única e universal de igualitarismo.
Chama-se Pedro e é, segundo as convenções que organizam as hierarquias da família, meu neto. Eu chamo-lhe uma parte de mim. Não é meu, não sou dele, somos uma ligação intemporal e imaterial da espécie.
Nasceste Escorpião, como a avó, e vais por certo saber amar e sofrer, e ganhar vencendo todas as barreiras.
Temos genes comuns e vamos provavelmente amar-nos como só nós sabemos amar.
Olho as tuas mãos que se fecham e se abrem, como se me quisesses dizer, desde já, recebo e dou, recebo e dou, ou dou e recebo, dou e recebo...E fico na dúvida em qual dos dois termos deverei iniciar-te...ou de cujo espírito já vens imbuído...
Os teus olhos miram-me de novo, franzes a testa , semi cerras os olhos, interrogas-me, interrogas-te. Quem és?... Quem sou?...E eu não tenho respostas, meu amor...