31/08/2008

SAMSARA- DIÁLOGOS DA ALMA

Quando o comandante do avião anunciou a descida para o aeroporto do Funchal, um tremor de emoção percorreu o meu corpo adormecido, acordando-me de um leve torpor e deixando retidas na minha memória imagens fantásticas de nuvens a galope, sobrepondo-se umas ás outras em imensos flocos de uma brancura e de uma leveza sensual.
A dada altura, provavelmente por a descida ser bem acentuada, a pressão que se faz sentir, parece querer fazer saltar todo o cérebro, numa sensação estranha que eu já tinha sentido em África, quando viajei num pequeno avião de guerra. As entranhas a quererem saltar, todo eu. Surdo, abrir as maxilas. Uma dor fortemente aguda nas frontes. A impressão de que o cérebro vai rebentar a todo o momento. O susto e o toque salvador das rodas na pista.
Chegar numa manhã de Domingo, o Sol castigador, desde logo cedo.
Enquanto espero as malas da bagagem, acendo um cigarro e olho em volta. E dou de olhos nos teus olhos, castanhos, refulgentes de vida mas tristes. O que sobressai de ti é o sorriso, imenso de simpatia, de sinceridade plena.
Quando deste por eu te olhar, os teus tomaram uma atitude altiva. Levantaste um pouco mais os teus belos cabelos castanhos que te caíam sobre os ombros. Bonita, pensei, mas estranho aquele olhar e o que vai naquela alma.
Absorvido nos meus pensamentos de ti, deixei cair o isqueiro e tu apressaste-te a apanhá-lo. Os meus olhos nos teus olhos e o teu sorriso.
“Olá. Chamo-me neoabjeccionismo e sinto que na temperatura amena da Ilha mais cosmopolita, o teu rosto é um mimo de encantos. e a imagem de Princesa Esquimó, um sonho de mudança”.
Levantaste-te com um ar irritado pelo tom atrevido das minhas palavras. Nem eu sei porque as disse, como fui capaz de as dizer. Foi um impulso abusivo de mim, de algo de mim que subiste em mistério. Os teus lábios fecharam o sorriso, uma nuvem espessa cobriram a retina dos olhos que antes brilhavam, e disseste, a voz trémula, grave
“Não sei se dê a boas vindas a uma pessoa que se chama "neoabjeccionismo". Os teus pais não gostavam de ti, ou o "Neo" quer dizer algo "muito à frente" que só um Uraniano compreenderia? Mas como sou um Rato Balança...Vou dar o benefício da dúvida e vou mesmo fazer um esforço para acreditar que o que disseste é cheio de boas intenções. Sou a Samsara.
Chegaram-me as malas e a pessoa que esperavas e saíste deitando-me um olhar de despeito.
Chegado ao hotel tomei um duche para me refrescar e fui ver a Cidade.
A primeira impressão de uma estranha e sensual beleza. O asseio nos passeios. O casario subindo os declives, o mar azul e a lembrança de miúdos, quando brincávamos no juncal, em jeito de desafio.
-É malta, levamos uma chata e vamos a remar até à Madeira. No mapa era como se a distância se medisse com um palmo.
Estava tão longe de um dia ser possível realizar esse sonho. E aqui estava eu. Madeira, a Pérola do Atlântico.
Comecei por vaguear por toda a parte baixa da cidade, encantando-me da arquitectura, das belas mulheres encaloradas, de múltiplas Nacionalidades, da vista sob as íngremes montanhas, até aos picos, nublados por densas nuvens, aqui e ali deixando que se abrisse o azul do céu.
A marina e os restaurantes em forma de barco, ou mesmo de antigos barcos recuperados para o efeito, A alameda ajardinada e embelezada de quiosques entre palmeiras e outras plantas e flores exóticas.
Percorrer a via Atlântica, longa e recheada de motivos de paragem, a fortaleza, os jardins em escada que vão dar ao casino e os próprios jardins do casino, de plantas luxuriantes e lindas de uma beleza de verdes e multi cores que contrasta com a imensidão azul do mar.
E como aquilatar da beleza sem ter por oposição a coisa feia, o desajuste da harmonia que se sente em canta encanto. Nos olhos das pessoas que não sorriem. Nos miúdos andrajosos que vagueiam desajustados do fausto da paisagem. O clima quente e húmido que me cola a camisa ao corpo.
Eu fora convidado para a inauguração duma livraria que se propunha ser um veículo de cultura, moderno e diferente de outros modelos já existentes na Cidade, a temática da cultura para todos e ao serviço de todos, as novas fronteiras do conhecimento e do saber...
Jantei nos Combatentes, servido por empregadas de Libré e um sorriso de enorme simpatia, em frente um dos belos jardins da cidade.
Quando cheguei ao local do evento, no Madeira shopping, a noite descera sobre a cidade e mostrava-me um deslumbrante espectáculo de cor e luz, das casas que subiam a montanha em toda a volta para onde eu olhasse. É um êxtase.
Já havia muitos convidados que se passeavam de copo na mão e petiscando das iguarias espalhadas em pequenas mesas ao redor da sala. E dei de caras com ela, que se ria em cristalinas gargalhadas com um grupo de amigas e que se quedou ao ver-me, de repente, como se de um fantasma.
Sorri para ela e disse em jeito de cumprimento:
“Olá, Samsara, para quem me dá um desprezível beneficio da dúvida, vê-la duas vezes num mesmo dia, não está nada mau. Quero reafirmar a sinceridade do que disse. E quanto ao neoabjeccionismo, é uma corrente de escrita, como que uma filosofia do desespero, que deriva do abjeccionismo, que não procura ofender ninguém em particular. E não me pareceu nada ético, que da sua principesca tribuna tenha chamado à vida, os meus falecidos pais. Mas vindo desta região , já nada me admira”
Tinha-se feito um silêncio em volta. As tuas amigas não perceberam o que se passava, o porquê daquelas palavras e ditas com um sorriso. Tu ficaste vermelha , mas os teus olhos brilhavam e intempestivamente largaste uma sonora gargalhada.
Uma das tuas amigas, a Luísa não gostou do meu tom, nem de algumas das minhas palavras e sem rodeios, citando-me, para melhor se situar:
“ “Mas vindo desta região, já nada me admira?”...Que engraçado, pelos vistos não a conhece, a Samsara não é Madeirense. Apenas costuma dizer que se sente mais Madeirense. Ou está a dizer que as gentes do Continente são mal educadinhas? Hum...talvez seja mesmo isso que quis dizer.
Ups...ou será que não?...”
Luísa, penso num relâmpago, tão bonito o teu rosto, tão jovem, os olhos grandes cintilantes, os lábios sedutores, o cabelo negro, a tua pele. Uma beleza que dói de olhar. O teu ar de desafio a parecer uma galinha da Índia empoleirada. Mas séria.. e ainda uma menina...
A anfitriã interrompe o nosso diálogo, surgindo admirada por nos ver em acalorado diálogo e sem se aperceber que eram tensas as palavras trocadas sob o ruído das conversas envolventes.
“Viva, Neo, Chegou e nem dei por si. Mas vejo que já fez amigas!...”
Carla, tinha vindo dos Açores apaixonada por um homem que lhe prometera a Lua e o Sol, sem se aperceber que o Sol e a Lua eram dois amantes condenados à solidão estática da distância. Que se encontravam de tempos a tempos quando, por motivos cósmicos, um deles eclipsa o outro dos nossos olhos. Desesperara de raiva porque se tinha entregue na sua totalidade à ilusão de um amor eterno, que não soubera distinguir da simples atracção física e do encanto das palavras galantes. ”Carla!...Valquíria da Terceira!. Exclamei, beijando-a nas faces coradas pelo ambiente ou pelo champanhe que já corria de boca em boca, gelado, doce entre acepipes de sabor contrário.
“Faço já as apresentações. A Samsara- Ui...o teu perfume, mulher, os teus lábios quentes sobre a minha pele, a sensação de frescura que deixaram. – A Luísa...- o teu beijo de lado, em falso, descomprometido de qualquer sentido que indicie amizade, mas o teu aroma a chegar-me fresco, sedutor, inocente. - A Anabela...tens um olhar longínquo, ausente, como se procurasses alguém em abstracto, mas és bela e o teu sorriso aprisiona-me. - E esta a Infiel.., o teu abraço confiante, expansivo e os beijos nas faces quase a tocar-me os lábios, atrevida, como se me quisesses sorver no momento. - Desculpem, meninas, mas vamos começar e o Neo vai ter que se sentar na mesa dos discursos..

nota:" o texto é pura ficção,qualquer semelhança de nomes é pura coincidência."
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É o que me proponho. Escrever sobre vidas anónimas que valem as luzes da ribalta ou a fixação histórica e que traduzem a essência de um povo. Primeiro de uma família. Primeiro ainda, ou antes de tudo, a essência de um homem, de uma mulher.
Escreverei por encomenda, preços de acordo com extensão e pesquisa de documentação. Mas com a paixão que o percurso proposto me suscitar.
Aguardo a vossa proposta.

J.R.G.

28/08/2008

A N A B E L A - DIÁLOGOS DA ALMA

Anabela!O que tem a Anabela? Hã???? Foi assim que tudo começou, naquela tarde Primaveril, o sol atormentado com um compacto de nuvens vindas de Norte. Imaginei, desde logo, o fogo que ardia no teu peito. O fulgor enigmático nos teus olhos castanhos. A beleza que sobressaia da tua alma aflorada apenas na tua interrogação.
Anabela. Hã!!!??? Que se passa amiga? Fui ver. E lá está de facto ...a Anabela... antes de loucos e depois de a voz ouve-se...E penso na virtude que é ter a fortuna de te haver achado entre a palavra loucos e a palavra voz e não saber o motivo. Sonhei-te. Já sei! Tínhamo-nos cruzado no blog de Samsara . Tinhas feito um, desafio, após uma prédica aos loucos . E eu ia perguntar a Samsara se a Anabela era sua amiga. foi isso. Só pode. Apareces sempre tão misteriosa, vais e vens pelos caminhos do Planeta Terra. Não dizes de onde vens, quem és, para onde vais depois de aqui, só sabes que vais pelos teus próprios pés. Saúdo-te mulher bela e formosa, e a harmonia das palavras que já de ti ouvi. O teu rosto é sereno, sabe à lírica de doce poesia. E porque não comentas a saga dos amantes desesperados, afogados em volúpia de prazeres sórdidos mas reais.? Amiga, não se passa nada. Tão só o que te expliquei acima.
Anabela a tua exclamação e o tom irritado, quase colérico da tua voz, sentida, inspirou-me esta breve composição. Achas que me saí bem? É isso, julgo que ia escrever a pergunta, se ela sabia quem eras, ou para não formular toda a pergunta deixei em uma espécie de código. Que pelos vistos a dita Samsara não ligou muito porque nunca mais me respondeu.
Fazes um compasso de espera na penumbra da sala onde o computador sobre a mesa repousa das consultas frenéticas que executas amiúde, para saberes de ti, a informação conflituosa que te vem de fora do mundo, do teu mundo, e onde reaprendes o retorno das palavras, a sua acutilância em aspectos importantes do teu viver.
Estás enganado Neo.Digo quem sou, sim...devo ser a única que assina com o seu verdadeiro nome...já te disse de onde venho...que queres saber mais?Olho de onde me vêm as tuas palavras, suaves, quentes, irritadas, ou serão maliciosas?O que eu queria e não digo, penso apenas à espera de ter a coragem de te dizer, era saber o lugar onde nasceste, onde correste a infância e viveste a adolescência, onde amaste pela primeira vez, onde aprendeste os segredos da descrição, a sublimidade dos gestos e da sabedoria. De onde vieste menina para continuar o sentido de ser mulher. Se amas, se és amada, se queres amar se esperas por ser amada, se sofres...
Anabela.Admiro-te pela graça, pela ousadia e o tom das tuas palavras. Imagino que és uma mulher de grande sensibilidade. Que estás ferida de uma qualquer situação mas não sentes ainda, espero que venhas a sentir, a confiança neste espaço onde entraste e só viste mixórdia e insanidade, ou aparente insanidade. Quero dizer-te que aqui tudo é falso menos as palavras de todos os intervenientes, eu devia falar só por mim, mas atrevo-me a acreditar nas análises das palavras e a atribuir-lhes vida e conexões várias de per si e entre si. ( e da música, gostas?), Quem aqui entra é porque está interessado na procura, para mais se entra e fala. Tu falaste minha amiga, e eu acredito que tens de ter algo de mais substancial para nos ajudar e te ajudar na busca do sentido dos desejos, de como desmistificar os dramas que as pessoas enfrentam e fortalecermos a confiança de cada um para enfrentar-se enquanto destino.As tuas palavras acima, querem dizer intervenção. E eu digo que sim, intervém. Ganha confiança em mim, em nós.
A tua voz ainda soa longe do tom amigo e fraterno com que te falo, com que tento ganhar-te, porque te sinto importante, porque a tua luminosidade confunde-me com o êxtase da Luz Divina, e quero beber de ti, imbuir-me de ti...Neo. Não sinto confiança, pois para esta existir, a meu ver, tem que se olhar para a outra pessoa, sentir o seu olhar...podemos trocar ideias, espicaçar-nos mentalmente, aprendermos coisas uns com os outros...mas confiar plenamente?... desculpa-me mas não consigo...Espero ser uma mulher de grande sensibilidade...e por isso mesmo sinto também quem tem essa sensibilidade...a Samsara, por exemplo, é de uma sensibilidade extrema, linda como só ela..

nota parte ( II ) esá editada no blog http://neoabjeccionismo.blogs.sapo.pt/
parte (III) está editada no blog http://samueldabo.blogs.sapo.pt/



É o que me proponho. Escrever sobre vidas anónimas que valem as luzes da ribalta ou a fixação histórica e que traduzem a essência de um povo. Primeiro de uma família. Primeiro ainda, ou antes de tudo, a essência de um homem, de uma mulher.
Escreverei por encomenda, preços de acordo com extensão e pesquisa de documentação. Mas com a paixão que o percurso proposto me suscitar.
Aguardo a vossa proposta.

J.R.G.

22/08/2008

CRÓNICA DA CIDADE GRANDE

Vista de onde eu a vejo, a Cidade é extensa e intensa, dorme de luzes acesas em continuo e tem a Lua poderosa como estigma dos sonhos.
Estou do outro lado da Cidade grande, descaído para a foz do rio que a banha vindo de Espanha. Na marginal correm luzes possessas sem destino. Infinitas. Sei quando é o comboio, pelas janelas iluminadas, o som das rodas nos carris de ferro, ou quando é uma ambulância que se esgueira por entre os possessos dos outros, distraídos, a verem de onde vem o som de alarme, de SOS, se é para eles ou para uns outros .
Estou na penumbra da outra margem obscura frente à cidade grande e tive sonhos, tenho sonhos, de ser grande como a Cidade
O brilho da Lua quase ofusca as luzes da Cidade e produz ecos que ressoam na minha memória incandescente. A brisa é fresca, suave, amena e em frente há casa com luzes acesas.
Fixo os meus olhos em uma delas, é como se um pisca-pisca alucinante, como um íman poderoso, distante, me apelasse o registo. Sim, são dois vultos que se movem, parecem lutar pela posse de algo que não vejo ainda bem. Sinto que são um homem e uma mulher, ainda jovens. Acusam-se mutuamente, gritam, choram e agarram-se desesperadamente, soltando palavras que ferem. Culpabilizando-se. E movem-se em contínuos movimentos de vai e vem em roda de um candeeiro de mesa ou de tecto.
_Acreditei nos teus sentimentos. Na tua lealdade. Saíste-me um traste. São palavras da mulher entre soluços de dor profunda._ deixaste de me amar.
_Tu é que só pensas em ti, não tens a noção de projecto conjunto, de espaço. Já não me amas e eu amo-te. Quero amar-te sempre. _São dele, as palavras proferidas no silêncio aparente da Cidade. Silêncio absurdo sobressaindo dos ruídos.
Percebo, o que eles disputam. É algo invisível que se lhes escapa a cada gesto Disputam amor, algo que sentiram, que sentem, mas que não entendem como se esfuma, se esvai deles que o querer reter, porque o queriam estanque, à mão de cada zanga, à mão dos desejos quando o desespero de ficar só aperta o sentimento de amar.
Desvio os olhos para a luz azul celeste na negritude da noite. Impaciente perante a passividade, o condutor liga a sirene. Leva uma criança que chora, que arde em febre de origem desconhecida. Um homem e uma mulher trocam olhares de socorro mútuo. Dizem palavras com os olhos, entre si e para a criança que lhes estende os braços. O seu filho. E é amor o que vejo, tanto que me seduz, me pára o pensamento, me encanta de mim, porque são formas de amor distintas que eu vejo naqueles olhos e naqueles olhares. Amores diversos, acutilantes, que se entre cruzam.
Gente jovem deambula pelas ruas em busca de mais horas de vida. Garrafas de cerveja nas mãos, risos estridentes, palavreado fácil, inútil. Apenas palavras para se ouvirem. Palavras que procuram projectar alegrias em si e nos outros. Palavras , por vezes amargas, outras obscenas, arrogantes ou simplesmente afectuosas, se são amantes. Palavras para esquecer ao dealbar do dia. Que fiz? Por onde andei? Que foi que disse ou prometi? E a quem? E amanhã?
Vejo brigas, discussões fúteis que provocam agressões. Assaltos de delinquentes menores.
Capitães da rua, decididos, disciplinados, cheios de vontade de serem maiores, ou tão grandes como a cidade. Seguem em grupo porque sozinhos perdem a força. Caçam como as Leoas, em grupo, escolhem a presa, também a mais fraca, debilitada.
Há gente que trabalha, despudoradamente, trabalha na noite para que a Cidade não estagne. Trabalham para poder pagar tudo o que gastam , que se torna numa justificante, para continuarem a trabalhar. A apresentação, o carro, a alimentação, a casa própria, o estatuto, a moda.
Vagabundos alienados procuram insistentemente nos caixotes de lixo algo que os reconforte. Têm pressa, antes da recolha que os inibe desse prazer de achar. Vasculham. Lançam impropérios por entre os dentes moídos, descarnados quando se riem.
Ás vezes procuram apenas um pedaço de cartão que lhes sirva de cama, um leito diferente, de cores e cheiros. Discutem uns com os outros, é meu! A garrafa vazia.
A Lua aproxima-se inexoravelmente da linha do horizonte, de onde passará para o outro lado de onde a vemos, estamos, de onde estou. E sei que o seu movimento produz mutações, alimenta desejos. Sei que influi na essência das almas que vagueiam na noite. E nas que dormem, que se disputam nos sonhos.
Estamos no dealbar de uma nova aurora e ainda tenho tempo de olhar a luz fraca, adormecida, do 12º , imponente, do lado de onde o Sol nasce, e aperceber-me dos movimentos exaltados de dois amantes que se entregam, como que na totalidade, tal a fluidez dos gestos e dos aromas que me chegam, os gemidos de prazer, os beijos, os ais do clímax, dum absoluto de amor.
Olho os corpos desnudos, despreocupados, relaxantes que as mãos de um e outro se acariciam ternurentos.
E mais à frente, salteando de janela em janela, os solitários que a insónia mantém vigilantes, desesperados de procuras insistentes sem achado: os amores frustrados, amigos desleais, contas por pagar, o desemprego, os pais que os abandonaram sem afectos, filhos desviados, os objectivos difusos, falhas de amor próprio, procuram, no passado, no seu passado, razões de afectação ao presente e esquecem-se de si, do seu interior onde tudo adormecido podia despertar, onde se asfixiam na amalgama de sentimentos profundos, dolorosos que se comprimem na ânsia de se soltarem, de uma palavra chave, uma luz, um milagre de si.
Sinto uma mudança brusca na aragem e um clarão ténue de claridade. Vai ser dia.
Ouço as vozes cavernosas dos primeiros pescadores, dos que chegam e dos que partem.
É o momento preciso em que a Cidade perde o brilho entre a bruma opaca da manhã junto ao rio.
Imensa, a Cidade grande, é agora um esboço e regurgita de um outro tipo de vida.

19/08/2008

UMA HISTÒRIA DA VIDA - O COXO

O Cocho e eu tínhamos um compromisso de partilha, selado na taberna da Americana num dia chuvoso de Dezembro, e frio, entre dois cortadinhos de excelsa qualidade, que ele bebia de um trago, numa pausa, enquanto eu os sorvia gole a gole, guloso de os saborear com evidente luxuria gustativa.
Ele desabafava de si, do interior de si, as memórias de acontecimentos da sua vida simples, eu ouvia-o .O sr. Manuel, como vimos anteriormente em http://neoabjeccionismo.blogs.sapo.pt/ ,.
O COXO, ficou sem uma perna e usava uma prótese artificial metálica, que os anos tornaram obsoleta, mas era o que tinha e que concertava inventando enhenhocas, sistemas alternativos de molas e engates com arames, de forma a torná-la funcional.
Tinha quatro filhas, a Gi, a Bé, a Lu e a An. Quatro lindas meninas criadas ao sabor do tempo e de uma ampla solidariedade, num tempo em que vingava um tipo de humanismo saído da Revolução Francesa e que vinha vingando na civilização Ocidental, permitindo olhar para o homem como um ser infeliz de se encontrar amargurado ao levantar e bêbado ao deitar e que era preciso dignificar, estabelecido o conceito de ter o homem como fim., para cujo alcance valiam todos os meios: declarar a guerra, roubar, espoliar, prender, arrasar a natureza e exterminar os animais "nocivos" ao homem.
O pais vivia sob uma ditadura politica e económica, em ambiente semi rural, vida simples, beatificada pela Igreja e o temor a Deus e aos poderosos.
O Coxo viera para Lisboa ainda novo, ordenhara vacas e fora condutor de sidecar, ficara sem a perna, como vimos,e no tempo que vamos descrever, no inicio dos anos 50 do século XX, o coxo era continuo numa instituição de " previdência " do estado.
Casara com uma mulher oriunda de famílias poderosas, mas que fora excomungada, deserdada à nascença, em virtude de dois acontecimentos, o pai ter casado a contragosto da família, com uma mulher de meio diferente e por ter nascido gémea, as duas tão sem graça, felosas, e haver uma outra menina esplendorosa, irmã mais velha que morreu pouco depois por ciúmes? constituir o motivo de as considerar culpadas de terem nascido. Só a Maria sobreviveu, destas três e logo que ganhou corpo foi posta a servir em casas de famílias.
O Coxo conheceu-a como sopeira e viveram uma relação apaixonada. Maria era uma linda mulher, analfabeta, mas linda. O Coxo ainda frequentara a escola, sabia ler e escrever um pouco. Era um homem bonito, bem parecido, baixo, moreno, olhos escuros e vivos.
Ele já tinha mais de quarenta anos, ela à beira dos trinta. Ela deserdada pelos seus, ele deserdado pela vida e estavam na iminência de herdar uma família.
Maria ficou grávida e logo pensaram em casar, porque o Coxo era homem de palavra. Gostava dela e queria seguir o tempo. Se o tempo era o mestre, como que um Deus, se havia um mínimo, uma base de partida, uma casa de família para os abrigar, se havia a possibilidade de uma casa social, era dar tempo ao tempo.
Nasceram as três com intervalos curtos. A Gi, a Bé, a Lu, esta já na casa nova. Maria trabalhava agora numa fábrica de conservas de peixe que abrira de novo. Trazia peixe escondido entre as mamas. O trabalho de continuo acabara porque o Coxo apanhou tuberculose. Esteve à morte, mas o tempo deu-lhe a mão, recuperou-o para o que havia de vir. E tornou-se carpinteiro de arranjos e de pequenas peças de utilidade que fazia no quintal da casa, sob um pinheiro manso, frondoso e entre canteiros de uma horta que lhe
fornecia a sopa. Tinha arte nas mãos calejadas que lhe advinha da alma simples.
Havia momentos de alegria, as raparigas faziam peças de teatro inventadas na imaginação,
por histórias e anedotas picarescas que o Coxo contava e pelos livros de leitura que a mais velha já lia e crescia nos enredos.
Maria engravidou novamente. Ficou furiosa, que a vida já era difícil e mais um , como ia ser!...
O Coxo, sereno, que se arremediariam como até então. Havia trabalho. O tempo era a favor. A favor de quê? De quem?
O que ele escondia era a sua ansiedade, pela primeira vez sentia alguma pressa, por saber se seria enfim o filho varão que tanto ambicionara. Se não fosse não era, mas gostava, era a sua paixão há anos. Um filho homem, em que pudesse reinventar-se ao vê-lo crescer, estudar, ser homem completo, como o Jean Valgean dos Miseráveis de Victor Hugo, personagem que elegia como simbolo de bondade e de justiça.
Nasceu. E era um menino, como o Coxo desejava. O seu sorriso iluminou a noite, aquela noite em que a Gi foi chamar a correr a Tia Mariana, parteira oficial do bairro, e ele a colocar a panela sobre as brasas do fogareiro, para que tivesse tempo de ferver.
Ouviu o seu berro, um grito imenso que parecia de glória, pleno de pulmões, de vida. Comoveu-se, como não se lembrava á quanto. Fumou mais que o normal. E riu-se para dentro de si, olhando a Lua que se avolumava no cèu estrelado. Um filho varão!...
As filhas traziam leite do centro social. Os visinhos, uma galinha, um coelho, umas couves. O trabalho, pequenos arranjos, ia aparecendo e o JoMa, o seu rebento crescia e já se sentava num caixote de madeira que ele fizera em jeito de parque, de recinto só dele, para que não se sujasse na areia do quintal.
O Coxo no rasg, rasg do serrote e o puto brincando com pequenas peças que ele lhe fizera em madeira boleada e leve. E já queria falar : Pá ...e mais à frente, ainda disperso Pá.... E o Coxo, sorridente, a quem aparecia, a dizer que o miúdo parecia querer dizer papá.
Dava-lhe o biberão embevecido. As miúdas mimavam-no. O JoMa era um Sol.
_É pá, traz lá mais um traçado, mas cheio. _ os olhos dele brilhavam de humidade cristalina e eu surpreso, indaguei.
_Mas então, não foi um momento único de alegria?_ ele, dum trago, o copo cheio, a limpar os lábios, os olhos, os óculos, a colocá-los novamente em movimentos pausados.
Um dia, enquanto lhe dava o biberão de leite da manhã, sentiu que o menino parou. Não ria, os olhos parados, os braços caídos, quase inertes, convulsões estranhas.Fazia frio, mas o Coxo estava afogueado sem perceber o que se passava. Chamou uma vizinha. Ela veio e viu que o menino estava mal. Pediu a alguém que fosse chamar a Gi, a mais velha e que estava na escola. A Gi veio, oito anos, uma menina. Alarmou-se. Era preciso ir chamar a mãe à fábrica e foi, numa correria, por entre os arbustos da mata de Pinheiros, veloz como uma gazela fugindo ao predador.
Maria, esforçada desde as 6 da manhã, arrancada à disciplina mórbida imposta na fábrica, por um motivo de força maior. Chegou e viu que o menino respirava com dificuldade, mas respirava, embrulhou-o numa mantinha e correu para o barco. Em Lisboa apanhou o electrico, o menino nos braços, os olhos baços, o coração asfixiado num espaço tão curto do seu peito que arfava. Silêncio. Alguém perguntou sobre o menino e ela, que ia simplesmente ao hospital. Estava mal, não chorava, não gemia, mas respirava, ou era ela que o fazia por ele, que lhe emprestava do seu ar, ou que se confundia, o confundia.
No hospital o médico olha o menino, olha Maria, levanta os olhos a querer talvez fugir dali e diz-lhe:
_Está morto!...Maria incrédula, mas.. e o médico
_Se não quer que ele fique cá, leve-o para evitar mais despesa. Vá num táxi, ninguém pode saber que o leva morto.
-Num táxi? Diz Maria entre lágrimas. Não tenho dinheiro para isso.
O médico deu-lhe o dinheiro e disse que fosse em siêncio. E ela foi, com o seu menino nos braços.
No táxi, em silêncio, contendo as lágrimas, comprimindo o peito, em ânsias por chegar.
No barco, vizinhas, conhecidas, amigas. _ Então e o menino, está melhor? E Maria respondia que sim, que não podiam vê-lo porque dormia, dormia...
Á chegada a casa, o Coxo em pé, amparado à cancela do quintal, o vulto de Maria ao cimo da rua, A mata de Pinheiros mansos, o abraço de ambos, sem gritos nem choros. À espera do tempo...

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Podia ser o inicio de uma história de vida romanceada, a envolver negócios, empresas de estilo familiar que ainda são o sustentáculo do país. E a tragédia que os apanha desprevenidos e vai condicionar toda a estrutura familiar futura. Ou o êxito de empreendimentos pessoais, conquistados e construídos a pulso.

É o que me proponho. Escrever sobre vidas anónimas que valem as luzes da ribalta ou a fixação histórica e que traduzem a essência de um povo. Primeiro de uma família. Primeiro ainda, ou antes de tudo, a essência de um homem, de uma mulher.
Escreverei por encomenda, preços de acordo com extensão e pesquisa de documentação. Mas com a paixão que o percurso proposto me suscitar.
Aguardo a vossa proposta.

J.R.G.

15/08/2008

MEMÓRIAS DA GUERRA - RAFA

Tinha um andar indolente e não era do clima quente e húmido. Era um andar provocatório, desleixado, da sua própria índole e tinha o hábito de puxar as orelhas daqueles que tinha mais confiança, não intimidade, confiança de falar, pouco, mas de falar.
A especialidade dele era Cripto, o que fazia da sua figura, um anátema de perdição, por tudo o que nele era enigma, os olhos sempre sorridentes, sagazes a perscrutarem semblantes, movimentos de lábios, gestos, e o indiciavam como um bufo ao serviço dos interesses.
As conversas mais politizadas cessavam , passavam a banalidades, à sua aparição, sarcasticamente sorridente. Rafa, o cripto. O que fazia as ligações do comando do aquartelamento, com o comando territorial. Só ele sabia as horas de saída em patrulha simples ou em missão de combate. As operações com grande movimento de tropas.
Rafa era mais importante que o capitão e não granjeava amigos.
Mas Rafa subsistia apenas. Como a grande parte deles, Rafa fora recrutado, arrancado a uma carreira promissora, à continuidade dos estudos que o levariam à formação em Psicologia, a sua paixão desde a adolescência.
É verdade que os observava, atento ao pormenor de um esgar, os gestos distraídos, que são os mais verdadeiros de uma pessoa. Uma palavra vaga, pitoresca, ou picaresca, ou séria e profunda mas aleatória, saída do vácuo da memória .
Amava cada um deles, uns mais que outros, questão de empatia, se superficialidade ou de profundidade, mas amava-os como pessoas genuínas, cobaias únicas reunidas num laboratório imenso e soltas.
Quando saíam para uma operação que só ele sabia podia ser fatal para alguns. Levantava-se à hora. E fica a vê-los, a galhofarem uns com os outros para afastarem o medo, de cada um de si. Os rostos apagados de outros, em período de concentração, de oração ou encomenda da alma. Ficava escondido, na penumbra da aurora que lá vinha. Os olhos toldados por lágrimas atrevidas que não podiam ser vistas. Um homem não chora. Um cripto é um homem que se quer frio, independente de emoções. Como se fosse possível...
Admirava Manuel António em especial. O seu ar aparentemente sereno, sorumbático por vezes, ou quando o via expectante, olhando a Lua num recanto da noite, poético, pensante de vá lá saber-se o quê...E como gostaria de o interpelar, discutir com ele nuances da politica, ensejos da alma, perspectivas do homem, os insondáveis segredos da mente que se deixam escapar em momentos de êxtase do ser, desapercebidos do consciente.
Manuel António parecia-lhe uma figura ímpar de humanidade. Acompanhava os indígenas em tarefas pesadas, dançava com as crianças na alegria das cantigas ao som do batuque do pilão, falava-lhes da metafísica de ser povo, o ar incrédulo e estranho dos jovens...
A importância de se assumirem como pessoas em evolução. Não que a evolução fosse uma meta, uma imposição de ser homem pleno, mas porque no estádio em que se encontravam eram uma presa fácil dos oportunismos encapotados de civilizacionais.
Rafa observava estas prédicas, de longe, mas suficientemente perto para perceber que os indígenas o ouviam por respeito, que achavam piada ao ênfase que punha nas palavras. Os olhos brilhantes de emoção.
Rafa admirava Manuel António pela sua camaradagem com os outros, da Companhia, o seu sentido do dever de instruir, de clarear ideias preconcebidas , de desfazer equívocos sobre o direito de soberania, o dever de lealdade. E nós, onde ficamos nós nas obrigações e nos deveres? Era um grito frequente de Manuel António, no meio da parada, sem medo.
Ter o homem como fim. A entreajuda o repartir do pão e da palavra. O entendimento do todo, do papel de cada um para o todo, da partícula ínfima de cada um, do seu corpo, do seu espírito, para o seu todo de si que iria reforçar o todo total, o todo absoluto.
Rafa sabia que não o devia interpelar nestes momentos de ousadia espiritual. O mais certo seria que debandasse, que se furtasse ao diálogo com ele, Rafa, o Cripto, conotado de bufo.
Ganhava mais observando-o de longe, medindo-lhe os gestos, os suspiros de ânsia ou enfado. As mãos inquietas que procuram posição sobre o tronco velho de uma árvore.
E era tudo o que lhe afluía à memória, neste instante único que há muito desejava, o convívio anual, ao vê-lo a rir-se despreocupado com outros companheiros, tantos anos passados, vividos em ausências.
_Rafa!...
_Manuel António!...
Um abraço emotivo , um beijo em cada uma das faces, o selo antigo da amizade profunda.
Falar dos percursos, andanças, vivências, tragédias e amores felizes.
_Sempre pensei que me consideravas um bufo.
Os olhos nos olhos, límpidos, por entre o nublado das emoções.
_Mas não, Rafa, os teus olhos eram leais. Se nos tornássemos íntimos, daria nas vistas, seríamos conotados como traidores.
Riram-se ambos num reforçado abraço, com palmadas amplas e fortes de Rafa nas costas de Manuel António.
_Sabes, Manuel António, ainda tenho um sonho que quero realizar.
_Sonhar até ao infinito do ser que vamos sendo. E que é?...
Rafa inquieta-se, agita o corpo, as mãos saracoteiam no ar leve da meia manhã, os olhos chispam raios de luz, uma luz de tipo novo.
_Reunir fundos, já tenho algum, saber a morada de todos e visitá-los, um a um, para saber se têm fome, qualquer tipo de fome...
_Rafa!!!...

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Podia ser o inicio de uma história de vida romanceada, a envolver negócios, empresas de estilo familiar que ainda são o sustentáculo do país. E a tragédia que os apanha desprevenidos e vai condicionar toda a estrutura familiar futura. Ou o êxito de empreendimentos pessoais, conquistados e construídos a pulso.
É o que me proponho. Escrever sobre vidas anónimas que valem as luzes da ribalta ou a fixação histórica e que traduzem a essência de um povo. Primeiro de uma família. Primeiro ainda, ou antes de tudo, a essência de um homem, de uma mulher.
Escreverei por encomenda, preços de acordo com extensão e pesquisa de documentação. Mas com a paixão que o percurso proposto me suscitar.
Aguardo a vossa proposta.

J.R.G.

10/08/2008

LAURA - ADULTÉRIO SEM RETORNO

Laura, sentada na secretária, no pequeno escritório da oficina que mantinha em sociedade com o marido, os olhos castanhos claros, raiados de tons de verde, avelãs. Os cabelos negros, a pele morena, mordendo os lábios carnudos,descorados pelo frio que sentia, apesar do verão seco e quente, os olhos fixos na imagem de Zé Maria, seu marido, que conversava com uma cliente soltando alegres gargalhadas em momentos de descontracção de pausa no trabalho.
A outra era loura e bem mais jovem que Laura. Bem produzida quer na vestimenta quer nos adornos em brincos.colares e pinturas. Teria perto de 30 anos e Laura perto dos 40, sentia ciúmes de todas as mulheres com quem Zé Maria gastava pausas de serviço, ou em serviço de relações públicas, explicando porque pensava ser o motivo da avaria, o que ele apontava como mais provável e não outro, que à cliente lhe parecia mais plausível.
Laura pensava que o que ele pretendia ao demorar as explicações era medir a estrutura física das tipas e apanha um ponto fraco, algo que o impelisse a avançar com uma proposta de almoço, ou simples encontro para práticas sexuais lesivas da sua qualidade de esposa.
Lúcia, a loura que falava com Zé Maria, tinha uns olhos claros de amêndoa, um corpo saliente de formas harmoniosas com destaque para as nádegas, ou o rabo, ovalizado e saído , empinado, que ela agitava com o andar ou os meneios do corpo enquanto falava
Era o que se podia chamar de cu obsceno. E obsceno porque todo ele induzia sensualidade, sexo, devaneios, apelativo aos desejos, ostensivo de voluptuosidade.. Quando Lúcia passeava no passeio o seu cão caniche, não havia olhar de homem e de mulher que resistisse e ela sabia e sorria disfarçadamente ou em evidente ostentação , para mulheres despeitadas que a sabiam cobiçada dos maridos.
Laura também sabia da reputação de Lúcia.
Um dia dissera-lhe, a ele, Zé Maria, perguntara-lhe o que encontrava nas outras mulheres que ela lhe sonegasse, E ele, que esposa era diferente. A casa, as crianças o sexo clássico para satisfação pontual. Ele amava-a, estivesse certa disso.
E ela, que não concordava, também tinha desejos, fantasias que a inquietavam, também gostava de sexo anal e oral e gostava que antes das penetrações a excitasse no clitóris, que lhe descobrisse as zonas do seu corpo mais sensíveis à excitação da libido, que não lhe machucasse as mamas e mordesse os mamilos, se não sabia que isso podia provocar cancro ou outra afecções das glândulas mamárias.
E ele, Zé Maria, erguera da mão e dera-lhe duas estaladas violentas. Desde aí andavam amuados e agora, ostensivamente, gargalhava com aquela desavergonhada.
Laura estava possessa de raiva. Os olhos chispavam de ódio, rebarbativa, mexia-se na cadeira que quase a tombava.
Pensava nas filhas, uma do falecido, o seu primeiro marido e outra deste Javardo
que aceitara tomar por marido e em má hora o fizera.
Vi-os sair no carro dela. Zé Maria disse que o ia experimentar. Se fosse um cliente, mandava-o ir sozinho ver se estava tudo bem, mas ali havia tramóia. ela sentia isso.
Ir embora, deixá-lo. E coragem para isso? Onde iria viver sem dar glórias a ninguém?
E como iria subsistir? Sim, o marido por certo não a queria na oficina. E ele é homem, mais forte , abrutalhado.
Traí-lo!
Mas Laura tinha do casamento uma ideia de respeito absoluto, de angélica submissão ao poder marital. Só de sonhar com outro homem, um amante de verdade, indispunha-a contra si própria. Era uma ideia que caminhava a par com os desejos ardentes que sentia em todo o corpo e na alma que a atormentava. Sentir-se amada, querida, desejada e devidamente reconhecida como mulher plena de tudo e o tudo era, boa mulher, boa mãe, boa amante.
O toque rotineiro do telefone, interrompeu-lhe a meditação.
-Sou a Sónia. Era para te dizer que fazes muito bem em continuar com esse safardanas mulherengo do teu marido, que te maltrata...Blá...blá...blá...
-Sim, mas o que se passa? Porque me telefonas para repetires o que já me disseste vezes sem conta.
-Ele,o teu Zé Maria, acaba de entrar na casa da Lúcia e ia todo sorridente, com a mão sobre o cu dela. Imagina a cena, no interior da casa!...
E desligou. Era a irmã, Sónia solteirona que dizia dos homens as mais hediondas barbaridades. Que só viam sexo nas mulheres.Que se serviam das mulheres. Que as usavam até que, gastas, deitavam-nas fora como imprestáveis.
Laura ficou para morrer. Se pudesse fechava a oficina e apanhava-os em flagrante. discutiriam. Pelo menos desta vez , se ela ousasse, não satisfaziam o prazer das suas fantasias. Os olhos raiados de vermelho de os esfregar, húmidos de raiva, de se sentir humilhada no silêncio dos amantes, nos risos soeses, nos olhares enviesados. Rejeitada.

06/08/2008

POESIA ERRÁTICA III

o limite diáfano

Movo-me nos bastidores da poesia,
e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame...
O lado para que durmo
é um limite diáfano:
aí os versos espigam.
Isso me basta. Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.
Sebastiâo Alba