10/06/2008

MEMÓRIAS DA GUERRA - DESERÇÃO

Manuel António no fundo da caserna e no silêncio da madrugada, onde só o ruído constante e monótono do motor da geradora, tão monótono que deixara quase de se ouvir, soava na penumbra.
Deixar tudo para´trás, a família, o grande amor da sua vida. Sim era aqui que tudo esbatia e se embrulhava em reflexos de si e do problema que de si evoluía em emanações voláteis e pouco consistentes para agir.
Seria de noite, ma não enquanto todos dormissem, porque havia as sentinelas e toda a Aldeia para atravessar. Também não adejava que fosse pegando o vento, em metáfora de fuga alada. Mas fugir, queria. Não fugir como soe dizer-se por cobardia, por não ter argumentos que satisfizessem a sua consciência, mas por sentir que era uma violência inútil, o que lhe ordenavam que fizesse. E havia as crianças que podiam morrer, nas armadilhas, nas emboscadas. As violações consentidas de mulheres, de crianças.
A palavra coragem a desenraizar-se, batendo nas têmporas latejantes, tornando-se grande e tapando a palavra amor que procurava subsistir em toda a plenitude da negativa de não o fazer, de ficar e aguentar.
Havia quem o tivesse feito antes. Paris, Argel. Uns tinham apoio financeiro, outros não. Chegados lá faziam-se à vida. Procuravam ajuda entre os que lá viviam e tinham segurado a existência e alargado o fio condutor. Digladiavam-se provavelmente noutras lutas não menos sórdidas.
Mas ele, Manuel António estava ali naquele fim de mundo. cheirando a catinga, suado e debatendo-se com a coragem e a cobardia, a razão e a ilusão do nada absoluto, onde a palavra amor ganhava uma particular acuidade. Sonhava com o amor de uma mulher absoluta de carisma na sua essência dela e na sua própria, dele, Manuel António.
Há dias que mal dormia. Debatia-se no infinito da virtude que se evadia de si enovelada em argumentos fantásticos de ser homem. Ser homem pela primeira vez, assumindo toda a responsabilidade de o ser e não mais se escudar em estímulos estereotipados de que alimentava o próprio ego.
Podia ser morto na fuga. Ou no acto de captura, se os outros não se apercebessem que queria passar para o lado deles. Como entender-se com os dialectos da guerrilha? Não iria encontrar, por grande sorte , quem falasse Português e Amílcar Cabral estava morto.
A estratégia estava delineada na sua mente febril. Havia ainda os prós e os contras. A loucura total da irrazão. Vencer a todo o custo a mediocridade que se achava por não ser.
Na coluna os homens iam sempre em fila e ele escolheria ser o último. Ninguém gostava de ir em último. Olhar para trás e saber que não havia nada, gente sua. E deixar-se-ia ficar, como se tivesse perdido o contacto e ficado desorientado do rumo e não quisera gritar.
Levaria as cartas e os escritos que criara no tempo passado naquele pesadelo de mistério onde as pessoas tinham olhos profundos e as crianças olhavam abismados para a pele diferente.
A decisão aprumava-se na ideia em concreto. Ainda uns pequenos pormenores. Alguma resistência. Quando as cartas que enviava diariamente não chegassem. Imaginar a dor daquele corpo franzino e belo de mulher que amava do interior de si e que sentia ser igualmente amado visceralmente. Como cortar este elo que o ligava em espírito.?
Tentou afastar as ideias por um momento. mas não, voltava tudo de novo, insistente, e a dor nas têmporas latejantes, como se fosse explodir a cabeça e tudo terminasse ali sem que tivesse de mover-se, em atitude.
Dois dias depois desta batalha mental, a noite pusera-se apática e dolorosamente quieta de luz do luar. Tudo opaco em redor de onde a luz dos candeeiros não chegava.
Os homens ,convocados durante a tarde reuniam-se na parada. Peitos arfantes de confusão interior não manifestada. Gente boa dos campos e das cidades. Gente inteira, como os negros que agora em silêncio, também eles preparavam mais uma saída, como guias das picadas que iriam percorrer toda a noite em patrulha de reconhecimento. Prevenção.
Manuel António vai atrás, seguro de si, convicto da temeridade da ideia. Do que deixava ficar.
Os homens deambularam a noite toda e não encontraram a caça. Aos primeiros alvores da manhã entraram no quartel visivelmente cansados. Os rostos cor de cera. As pernas bambas, indolentes e iam-se deixando cair pelos cantos de encontro à caserna.
O Alferes conta os homens, reconta e ,em sobressalto, diz que falta um homem.
Chama-os um por um. manda alguém ás latrinas, ao interior da caserna, que voltam dizendo não haver ninguém mais.
Falta o Manuel António, o cabo.

3 comentários:

Carlos Dias disse...

Talvez que Manuel António na primeira oportunidade tivesse escolhido a sombra de uma árvore para descansar e tirar do bolso uma folha de papel onde escrever na velha máquina o poema "le deserteur" de Boris Vian.
Depois disso, o caminho teria outro sentido.

Um abraço de amizade e admiração.

Carlos Dias disse...

*déserteur

tem a palavra o povo disse...

Amigo, obrigado por ter vindo. Dir-lhe-ei que sim, que poderá vir a ter outro sentido. Mas aqui, a história serve de esboço para uma história mais profunda.
Tenho outros dois blogs no sapo, um que obtem por hiperligação deste, clicando no titulo do artigo.
O outro é: abjeccionista@sapo.pt, é neste que tenho utilizado mais tempo e se lá chegar, repare na riqueza dos comentários dos outros.
Um abraço amigo