25/05/2008

O ABSOLUTO DO AMOR

Estar encurralado entre as quatro paredes e o tecto obscuro do sotão da casa. Estou só no meu silêncio de mim. Por vezes vejo os fantasmas especados nas paredes sujas de branco, porque deveriam ser negras, as paredes do sotão.
Em baixo, no outro pleno da casa, a mulher mexe e remexe no que resta na tentativa de lhe dar uma harmonia impossivel, na lembrança dos tempos que ainda a habitam
Também ela está só na sua solidão de si. E ainda somos como um só na solidão de nós ambos.
Fora, na quietude do tempo, a sugadora de cereais mata o doce muralhar das águas que, vindas de Espanha, aqui se espraiam, comprimindo-se contra o mar, adocicando-o.
Estar na penumbra do homem, sem saída consistente E sentir que tudo o que posso é remediar, nada de definitivo, de absoluto.
-"Vamos tentar o absoluto. Viver o absoluto.
Diziamos entre nós, tu e eu, no pleno daqueles anos que nos arrebataram. E foi assim que, apaixonados de nós e por nós, deixámos que o sistema nos envolvesse na sua teia pretensamente irreversível e nos fosse quebrando.
Quebrando sem partir. Cacos que fomos consolidando numa ânsia de nos termos, encurralados mas livres e possuídos de nós.
Ganhámos na essência da vida, porque ninguém amou como nós amámos e sobreviveu.
Tristão e Isolda...Romeu e Julieta...Pedro e Inês....Nós, em absoluto de amor.
E veio a guerra. A sério. Com tiros e rebentamentos de minas, com crianças mortas e mães destroçadas. E macacos desesperados em gritos aflitos. Mas isso foi antes de nos fundirmos como um só. Ainda nos prometiamos na ilusão do amor e da cabana. Virgens de nós em absoluto.
Amámo-nos num desvario de loucura arrebatadora. Amámo-nos para além de nós, porque já era algo que nos ultrapassava em sentir.
O teu sorriso, o teu olhar refulgindo de esperança.
Meu amor absoluto.
Agora, no momento em que te penso e sentindo que te mexes em baixo de mim de onde eu estou e te sinto, compreendo que posso amar o infinito de ti.
Porque eu e tu somos um só, em nós.

24/05/2008

DESPEJO - A MEMÓRIA DOS LIVROS

Um homem e uma mulher, ainda jovens e um cão, preto, as sobrancelhas castanhas, um doce olhar acomodado à circunstância.
Na bagageira do carro, onde se acoitam e preparam a alma e o corpo para a noite, os livros, memórias que foram objectos da sua própria memória. Autores credenciados, humanistas, filósofos, o sumo das letras de todo um mundo de eras e ideias remotas.
Três seres e uma multidão de idiotas que sonharam um dia ser glória e só após o fim, um póstumo reconhecimento glorificou.
São três seres que se amam, ainda que de formas e sentidos diferentes. E estão ali, confinados ao interior de um pequeno automóvel, despejados da casa onde criaram raízes efémeras.
O cão, no banco traseiro, enrosca-se de maneira a aproveitar todo o calor de si e a que se reflicta em si, como que armazenado em condutas à volta do corpo.
O homem e a mulher assumem o amor no pleno da desolação. Aquecem a alma. Não falam, porque já não há nada para dizer. Uma leve manta a cobrir os corpos que ainda projectam calor e desejos. E amam-se, sôfregos, esquecidos de onde estão. Estão neles e nada mais há para além deles no momento. Não fornicam, amam-se. Não é sexo, o que fazem, é amor. Não há quadros de erotismo a povoar a mente, nem fantasias da libido. Nem conforto nem irracionalidade. Não um acto gratuito a que nem a presença do cão obstasse a que atingissem os orgasmos sem um nexo de causa. Amor, amor doentio de si, inexplicável, como um só, enrolados da mesma forma que o cão e como ele sujeitos à rua por momentos de dias.
Antes que o sol viesse iluminar os rostos cansados do descanso nocturno, puseram-se ao caminho, sem rasto anunciado. Para que ninguém publicitasse a ousadia de terem afrontado a moral pública instituída.
No paredão onde elites endeusadas distraíam os corpos ou simplesmente exibiam estilos de andar e conversas triviais, de alta importância para a construção do mundo, dispunham os livros que foram a memória. Em lotes pelo preço achado em cálculos sem um critério preciso. Pelo volume. Pela apreciação subjectiva do valor intrínseco das palavras. Pelo autor.
Livros que contribuíram para ele, homem, construir a sua própria concepção do mundo e que agora pretendia que se transformassem em pão, como se já sem outro préstimo.
Se tinham que partir, que partissem, enquanto olhava atento o desfolhar interessado de um qualquer que parara atraído pela cor ou um titulo mais expansivo, gritante, a chamar.
O titulo ou o autor, apelativos, sob o sol de Julho ainda fresco pela manhã e o mar, de um azul nacarado em manchas estranhas pela sombra de barcos abandonados ou pelos os lhos raiados de sangue, sereno, num chap-chap continuado contra as pedras da muralha.
Cada livro que parte é um orgasmo sentido com a volúpia de sentir a evasão de mais um mito. e a cada mito que se esvai, o seu próprio ser se encolhe empedernido.
Está tudo aqui, justifica-se perante si, já não fazem falta e são apenas pão. O miolo, a essência que os enformava, engoli, misturei com os genes em rodopios sangrentos de lutas de uns com os outros, dada a diversidade de conceitos, de verdades afiançadas, comprovadas. A oratória, a escolástica, a demagogia, a farsa, o drama, a megalomania, a filosofia e as doutrinas de fariseus, judeus, islamitas, budistas e cristãos. Tudo aqui, o dedo acusador ou só indicador, na testa enrugada.
E ao fim do dia foi-se, ele a mulher e mais o cão, e nunca mais ninguém os viu

23/05/2008

O ASTRÓLOGO

Na grande superfície comercial, num espaço nobre junto ao corredor central por onde toda a gente passa, já estava montada a banca, o cenário envolvente numa aura mística com a exposição dos livros e os cartazes que anunciavam a presença do Astrólogo.
Haveria a oferta da carta astral a quem comprasse um exemplar do livro ao que se seguiria uma breve interpretação das características de cada um.
Havia fila e impaciência pelo atraso. E eram, na sua maioria, mulheres, de meia idade e até jovens que admiravam o Astrólogo e as previsões que fazia sobre eventuais acontecimentos. à espera de respostas imediatas para agirem ou simplesmente aguardarem o ciclo propício.
A atmosfera de cheiros intrigantes numa simbiose de aromas díspares, entre perfumes e desinfectantes, o bacalhau os legumes, a livraria de olores distantes.
Chegou. A mala a tiracolo. A expressão a indiciar cansaço, as desculpas em trejeitos de lábios e sorrisos, o trânsito, a dificuldade em arrumar o carro.
-O António, não veio, ainda?
Digo que não. E ele, desinteressado, a dizer que vem. Que ficou de vir e mais a Manuela e que sem eles não podia chegar a todos.
O computador, a impressora, as canetas e papeis para preencher o nome e as datas correctas de nascimento, local e hora.. O ligar das máquinas, o filho confortando-se na cadeira, iniciando o programa e a mãe, uma simpatia de senhora a dar indicações. A sentar-se majestosa e radiante de orgulho.
-Vamos lá começar. Quem está primeiro?
Avança a primeira da fila que leva dois livros. Um é para ela outra para oferecer à mãe que é uma grande admiradora do Astrólogo.
E ele, de olhos brilhantes, explicando que oferece a Carta Astral e uma pequena interpretação da mesma. Mais explicito, só marcando uma consulta, onde a personalização da análise permitirá outra ilações.
Entretanto chegaram os colaboradores. São como as fadas que sugerem paliativos a inquietações e dramas. E colocam-se à disposição. Os gestos abarcando todo o Universo. As palavras quentes e indutoras. A descoberta. Olhos húmidos pela emoção de se expor, a pessoa, mulher frágil enrolada em dúvidas, em suspeitas, anseios ou traições pressentidas
E o comercial, atento, distribuindo os papelinhos e respondendo a perguntas, incutindo expectativas, saindo já do aspecto comercial e deixando-se penetrar do espírito Astral e da humanidade evidente que se evade dos olhos, das palavras, de gente que se preocupa consigo própria. A encontrar similitudes abrangentes, a trocar impressões depois das impressões. A acreditar, a fazer acreditar.
Oiço o Astrólogo dizer a uma jovem que tem o signo tal em tal o que indicia um diferendo com sua mãe. E ela a aquiescer, que sim e a questionar como resolver tal dilema.
E ele que precisa de um estudo mais profundo, que ela marque uma consulta.
Ouço o António, num outro recanto da estante repleta de livros, surdos mudos ás vozes excitadas, excitantes que falam da tragédia de amores possessivos, inconstantes e nem sempre devidamente correspondidos.
E ele a falar em Marte, Úrano, Plutão e em tons macios, adulantes, penetrante no âmago do ser que se contorce na busca de si e de uma palavra que a seduza.
A troca de olhares cúmplices entre todos os que compõem a imagem de pequenas tragédias, ou simples curiosidade de saber se é verdade o que já sentem de si próprios.
Explicar até quase a exaustão que a Astrologia não é um ler a sina. É antes uma análise da pessoa considerando as influências Astrais sobre o exacto momento e o lugar do seu nascimento e que a cada ciclo ou momento é susceptível de sofrer alterações, por efeito de fenómenos ocorridos em constelações de Planetas que nos condicionam e ou intuem no nosso crescimento.
Observar os efeitos psicológicos que o desfolhar da suposta personalidade têm sobre a pessoa submetida à análise do Astrólogo.
Anuir que a Astrologia sendo uma prática ancestral da procura do homem pelo seu destino e por se tentar explicar a si mesmo a razão de ser de uma forma e não de outra, constitui um elemento fundamental na área do conhecimento pessoal e das ciências da mente e como tal não pode simplesmente ser ignorada, ou ostracizada.

11/05/2008

MEMÓRIAS DA GUERRA - A EMBOSCADA

Na densa mata de aromas a avivar a memória, no limiar da infância, os homens acoitados de armas aperradas, tensos, olhos vivos no estreito carreiro eleito como objectivo da morte.
O silêncio, cortado de avisos da macacada inquieta por intrusão abusiva do seu espaço, sem permissão para ciciar o medo ou a revolta.
Imagino as pessoas que se põem ao caminho algures no interior da mata. Mulheres que vão labutar na bolanha, que levam crianças, algumas, de colo. Gente distraída, indefesa, gente que fala uma outra língua.
Os insectos colados no suor do corpo, num acto supremo de amor sádico, mas amor, porque se bastam em nós, em mim, se fertilizam e multiplicam.
Lembrar as emboscadas de outros caminhos, na vida já vivida e na que espera por viver, na solicitude de nos acharmos no direito de decidir o tempo do outro, ali, no silêncio da mata, floresta de árvores enormes, amantes taciturnas de ervas daninhas e bichos ainda não adulterados, ainda não manipulados.
Olho os rostos dos outros numa tentativa de ver o meu próprio rosto. De achar os contornos da razão que nos, me motiva ou que nos, me permite, não ser e sendo os criminosos que matam à distância e a coberto da cilada, surpresa, se bem que a mando, ainda que a mando, de quê? de quem? E como vou, vamos viver depois, após o descarregar das balas agigantadas pelo percutir do cão da arma feita monstro em mãos que se permitem não saber?
Tu, Transmontano, recto na apreciação dos usos e costumes e aberto à junção de novos conhecimentos, que respeitas a integridade e zeloso dos fracos.
Aquele, beirão, entre a alta, a baixa e o litoral. O olhar franco, o espírito fraterno, cioso de estender a mão a quem venha por bem.
Pássaros grandes, abutres, aguardam pacientes a orgia da carne esventrada por instantes e atirada em lascas à súcia dos milhafres expectantes.
Olho ainda o rosto do tripeiro, do minhoto. Gente esforçada e penitente, afiançada nos baptismos de Sés, ermidas e oradas.
Olho e não vejo como subsiste este estar aqui, estando noutro lugar. E volto a procurar, nos rostos inocentes que queremos ser, uma luz que me permite ver na escuridão.
O sol afecta os neurónios já empobrecidos por décadas de ostracismo cultural. Não fomos habituados a pensar. Na adversidade, lá estavam: Deus, Jesus, Maria e os Santos Apóstolos.
E agora que era preciso raciocinar, servimo-nos dos mesmos postulados. Que Deus nos salve, enquanto matamos o filho, o pai, a mãe, de adeptos de outro Deus e Santidades.
O rosto envergonhado do Algarvio, A tez morena do alto e do baixo Alentejano dum cabrão, e é o mesmo sentir de não sou eu, quem aqui está de olhos fitos numa imagem de terra no carreiro.
O capitão, da fina elite Lisboeta, despreocupado, sem galões, como um igual a tantos, a justificar que a cultura não é desculpa para não vencer, matando a estupidez que se quer impor à história. Olhando um por um a a cada instante.
E eu? A quem pertenço? De que região sou oriundo? De Portugal inteiro, ou cidadão do mundo?
Foi quando o tiroteio irrompeu com fragor de explosões de granadas de morteiro e os uivos sibilantes das balas tracejantes por entre as folhas verdes do sibilino e majestoso arvoredo.
Saltam macacos apavorados, guinchando em estrondos de ódio ou medo. Aves que piam, e são gritos aflitos de mães obrigadas a abandonar o ninho.
Como começou, parou, o tiroteio. Foram ver.
Uma criança, talvez de 2 ou 2 e meio, ilesa, chorava sobre o corpo crivado e o sangue de sua mãe.

07/05/2008

DROGA-A RESSACA

Era um quadro considerado importante. Pode dizer-se , um alto quadro de empresa farmacêutica , com direito a assessores e outras mordomias instituídas .
Telefonou a antecipar um período de férias por quinze dias
O dia amanhecera fresco, com o sol de uma cor amarelada a despontar por sobre a falésia, enquanto em frente o mar de infinito, a cor verde adensada, espelhada numa larga extensão até que a linha de horizonte , como um traço fino de lápis afiado, se esbatia abruptamente no alcance da visão .
Dormitara na cadeira em frente da cama onde o corpo dela meio despido se espraiava em movimentos lentos , quase doces , por vezes convulsivos. E acordava, ele, em cada instante, sobressaltado , olhando de imediato o volume pequeno mas visível dos 2 panfletos de droga em cima do pequeno móvel das fotografias.
Será que vou ser capaz ? interrogou-se no silêncio do quarto amplo e meio na sombra dos cortinados corridos que escondiam a luz, prolongando a ideia de noite.
O corpo da mulher jovem e talvez bela um dia , ainda, que já fora . Parecia-lhe mais cheio. Que a carne ressequida voltava a ocupar, muito lentamente, os espaços escavados pela fome de anos. Um corpo de mulher na sua cama de desimpedido, livre de grilhetas legais .
Ele e ela como um só, o pensamento dele a vogar um sentido, enquanto o dela imerso em sonhos de afogada salva no ultimo instante, permanecia inacessível a qualquer apelo da razão
Pensava na essência do amor , O sentido presente da significação da palavra enquanto entidade que lhes proporcionava uma oportunidade de redenção. A cama dele, onde vivera noites fatídicas de orgasmos múltiplos com mulheres carenciadas de afectos, perfumadas de aromas exóticos e que ao acordar pela manhã se mostravam na verdade puras de odores imcompativeis com a sua genética do cheiro.
Não havia perfumes adulterados naquele corpo de mulher e no entanto, o ar do quarto estava purificado pela maresia que entrava na fresta da janela e os inundava num amplexo terno e sedutor.
Levantou a perna, ela, num gesto descuidado descobrindo a púbis luzidia, os pelos emaranhados mas soltos, leves, seco de pruridos ou corrimentos o sexo de crostas ainda agarradas no clitóris engelhado, como sem vida.
Levantou-se aturdido pela imagem dum ontem que procurava esquecer e com um sorriso. ainda tímido nos lábios carnudos, foi preparar o pequeno almoço.
Estava acordada, quando voltou de tabuleiro recheado, e o melhor dos sorrisos, a dizer a palavra bom dia.
Recomposta, esclarecida da nova situação, mastigando cada pedaço, rebuscando na memória escaldante, justificações quase pueris.
Os pais separados. A preocupação com a carreira de cada um. O irmão que era a glória da família. Namoricos desinteressantes de adolescente fugidia. Uma mudança de escola intempestiva.
-Seria melhor avisá-los que está bem?
-Não. Puseram-me fora, acreditaram nas palavras de psicólogos imbecis.Que eu havia de me cansar da rua. Quando o que eu precisava era que me amassem sem reservas. Que atendessem ao eclodir de mim como pessoa. Que se confiassem em mim.
Parou. Os olhos febris e suores pelo rosto. Os olhos castanhos, chocolate, a olhar os panfletos em cima da mesa dos retratos. o corpo a contorcer.se em espasmos incontroláveis.
-O que foi? Ele, com mel na voz, quase ciciando as palavras.
Os olhos dela nos panfletos, a levantar-se, encolhida, agarrada a si própria, os braços magros em volta do corpo, a chegar à mesa, a poisar a mão no objecto de toda a fixação, o sonho, a libertação afrodisiaca. Um gesto brusco e o ar desvairado na procura, de quê, ainda.
Os olhos dele em ela, como que guiando o sentido da vontade.
-Não!. O tratado! Quase um grito alucinado, a fugir do nada que não sendo é quase tudo.
Voltou, deixando os panfletos no local exacto onde estavam. Não já para a cama, mas deixando-se escorregar em tremuras, num canto do quarto, o mais escuro dos quatro, continuamente agarrada a olhar aquele homem que não a quisera ter como tantos outros e a perguntar-se porquê. Que fazia ela ali, a sofrer dores insuportáveis. Se bastava uma simples dose do produto. E outra. E outra até à finitude de toda a matéria que ainda era.
Foram oito dias das férias. Fechados os dois, no quarto amplo de cortinas corridas. O comer encomendado pela Net. a langerie umas roupas bonitas para que se gostasse, os sapatos.
Três dias a implorar, ela , em delirios lancinantes. Por mais de uma vez segurara os panfletos entre as mãos trémulas e por entre soluços os largara.
Ao oitavo dia, ele tinha adormecido, por um momento. Acordou ao bater de palmas repetidas. O primeiro olhar foi para a mesa dos retratos. O coração em estrondos de batuques frenéticos. Desapareceram.
Olhou em volta e na expressão de espanto dos seus olhos, a imagem raiada de luz, em catadupas de luz, como um sol dos principios do mundo, intenso, espalhando sonoridades na luz. como se um coro de meninos entoasse uma canção de amor
O vestido vermelho cingido no corpo renovado de carne. Os olhos com uma expressão tão viva de felicidade. Sobretudo os olhos. Castanhos chocolate.
O vermelho sangue do vestido. O cabelo brilhante caído a raiar os ombros a descoberto pela cava do vestido.
Olhou a mesa. os panfletos que haviam desparecido. E o riso dela, cristalino, aberto, confiante a levantar a moldura de criança em cima da mesa, deixando ver os pacotinhos. o papel branco sujo.
Levantou-se, os olhos toldados e abraçou aquele corpo bem cheiroso de aromas únicos, naturais, as mãos dele nas faces da menina bonita que ela se transformara, macias agora, os braços, os seios a voltarem a uma normalidade estranha ao corpo de antes.
Abraçou o corpo em êxtase.
-Minha menina! Minha menina! Como tu estás linda e vistosa.
Como eu amo o que tu és agora. Um amor diferente de todas as espécies de amor. Um amor da ideia que consubstancias na forma do teu ser absoluto.
Vou amar-te e mimar-te sem limites.

04/05/2008

AS DROGAS-O FIM DA TRAGÉDIA

Era de noite e vieste, silenciosa como um felino, de manso caminhar por entre escombros, ruínas, da velha cidade adormecida. Tu e eu, num recanto da rua mal iluminada.
Os teus olhos ainda grandes, mal me olham, assustados. A pele do rosto descuidada e manchada pelo cisco das poeiras adejantes . Magra, diria escanzelada, enferma de carinhos e de ambição.
O sistema traiu-te e tu trais o sistema. Pagar na mesma moeda. Dente por dente. Sem olhar atrás nem para a frente nebulosa do caminho. Para ti, chegaste ao termo da etapa que para outros ainda é tão curta
Amparas-te no meu braço enquanto caminhamos lado a lado como dois amantes estranhos que tivessem combinado encontrar-se a esta hora, no momento estremo em que deambulavas na ânsia de encontrar algo, alguém que te bastasse o consumo da tragédia que já és.
Congregas o absoluto da tragédia. É isso.
Deixo-te sentada no carro e volto à porta do bar. Não ao Bar. Apenas a porta, onde um tipo de assobio saltitante, a barba indigente, puxa fumaças agressivas de uma espécie de cigarro
Compro três tomas do produto que me indicaste e regresso ao carro em passos decididos. Tenho pressa.
Estás inclinada para a frente e uma humidade indecisa a bailar-te, escorrendo dos lábios entreabertos. Cai sobre o banco. Tremes alucinações. Balbucias palavras inteligíveis .
Arranco com o carro, tenho pressa, enquanto preparas o produto e o injectas numa das veias disponíveis, sob o meu olhar de soslaio.
Chegados, a casa não tem adornos nem vistas. É soturna, com livros e papeis espalhados sem critério. Ainda se o tivesse, se escolhesse o sitio onde o livro tal num determinado lugar do chão, ou o papel em relevo, atirado num momento de raiva ou de simples abstracção
Olho para ti, o teu corpo ainda de criança, mal cresceste, rodeado de feridas provocadas em improvisos da tragédia. A garro-me a esta palavra: TRAGÉDIA, ao seu significado linguístico quando incluída num contexto, a esmiuçá-la quanto à significação da palavra em si e o que representa para ti e para mim, necessariamente emoções contrárias e não porque sejas mulher e eu homem, mas por força de outras eminências do ser e do não ser neste momento.
Olhas para mim enquanto despes, peça a peça, com falsa volúpia nos meneios do corpo, tentando induzir-me em eróticos fluidos inexistentes . Os olhos mortiços, apagados, sem brilho, sem luz, mas olhos e com um certo tipo de visão. evasiva, turva
Atiras-me a cueca mal cheirosa. Mijo e esperma de momentos antigos.
No quarto de banho a água morna sobre o teu corpo. Deixas que as minhas mãos o percorram em movimentos lentos com a esponja embebida em gel e a espuma abundante a cobrir a pele, as chagas ainda não abertas. Os meus dedos penetram o canal anal em movimentos suaves retirando a merda acumulada. Há quantos dias, meses, anos. Desde quando. Dilatado o teu cu por enrabadelas consentidas em sôfregas investidas de gente tão sem ser como tu. O teu sexo original. Que te fizeram? Queimada com cigarro.? elástica pelo uso sem nexo e a violência da irracionalidade.
Os teus pés tão delicados, gretados e as pernas que foram belas e agora encanecidas de veias duras, chagadas . As mamas são dois balões que se foram esvaziando. Espremidas, a carne, as glândulas , a seiva.
Seco o teu corpo com a toalha grande de todos os banhos e estendo-te a camisa de dormir da última mulher que amei. Escovo o teu cabelo. Abraço-te para te sentir. Para que me sintas.
-Estou limpa, vá. podes-me foder .
Olho para ti de novo. estás limpa por fora. Quase linda. Se tu quisesses!!! Se tu quiseres!!!
Preparo uma refeição para nós dois. Bifes grelhados e batatas fritas. Faço sumo de laranja.
Sentados em frente, os meus olhos nos teus olhos até que me fixas e te deixas fixar.
Falas-me do desacerto da família. As carências de amor e de ódio. Apenas indiferença que dói , manipula a pessoa e a degrada. As noitadas sem registo, o desinteresse de tudo. A venda dos sentidos. Por momentos alucinantes de loucura. e as ressacas são uma outra espécie de prazeres ocultos que nos inibem de nós e nos transportam para o outro lado do ser, o não ser. Onde já ninguém se importa de nós, até que um dia, Bah . Apaga-se.
Perdeste os modos de comer. Tens fome e fastio. Sem pressa e enquanto experimento sondar o que resta do teu eu, da essência que resta, que a droga não extinguiu.
-Gostava que ficasses aqui.
-O quê? Viver contigo?
-Não. Ficares aqui, simplesmente e deixares que que te reaprenda e que tu própria reaprendas a pessoa que há em ti.
Choras. As lágrimas escorrem desabridas pelo teu rosto que vem ganhando alguma cor.
Abraço-te e levo-te para a cama. Vejo que ficas na expectativa do que vou fazer a seguir e ensaias as posições aprendidas na tragédia.
-Fazemos um tratado.
-O que é isso?
-Um acordo de princípios . Vou colocar as duas doses que restam ali, ante ti. Para que os teus olhos as vejam. Em cima da mesa das fotos de família . E tu vais resistir-lhes. Que dizes?
Viras-me o cu. E momentos depois, emocionada, a voz embargada numa aura de esperança, envolta em amor, sem palavras, o sentido diáfano do conceito.
-Porque esperas? Acaba com isto de vez. Faço tudo o que quiseres, Na cona , no cu, na boca. E deixa-me seguir o caminho. Podes ficar com a merda da droga. está pago.
Ela disse as palavras sem o olhar. a cabeça enterrada na almofada, a aspirar os aromas lavados há tanto esquecidos.
Levantou-a docemente da cama. Ele. O corpo dela a exalar os cheiros que cativam encantos.
-Esquece tudo. Apaga. Agora és uma outra pessoa, sem passado e de presente suspenso.
Estou aqui para te amar num pleno de intenções e conceitos da palavra. Não quero ter nada contigo do que dizes. Não quero foder . Quero-te num todo onde
tu também és querer. O que eu quero agora é amar-te por todos os que não te amaram.
-Ufa! Queimas-me . Onde é que eu assino.

02/05/2008

ABJECCIONISMO

O abjeccionismo ainda incomoda muita gente. Talvez por ser oriundo dum pensador de origem Portuguesa e que nos deixou uma pergunta a que muitos tentam responder:
O Abjeccionismo basear-se-á na resposta de cada um à pergunta : Que pode fazer um homem desesperado, quando o ar é um vómito e nós seres abjectos? (De Pedro Oom)
Ora, sendo o ar que respiramos um vómito continuado, quase irrespirável, nas sua componentes de gases e palavras que procuram definir conceitos e intenções. Palavras que ofendem a razão pura e nos reduzem à qualidade de seres abjectos e desesperados por nos libertarmos das palavras que nos circundam, dos sistemas em que nos deixámos enrodilhar e de que não vislumbramos a alternativa porque nos fizeram esquecer o que somos, nos tiraram o significado do ser.
O que vos proponho é um desafio à vossa capacidade de pensar de e para vós, na resposta possível à pergunta que ficou no ar e à qual, eminentes criadores tentaram responder sem sucesso e por via disso condenados ao ostracismo implacável da mediocridade actuante que nos rege a matéria e o espírito.