12/04/2008

S.MIGUEL, AÇORES - O NORDESTE

Hoje o Sol pregou-me uma partida de menino mimado e irresponsável. Enredou-se em neblinas maviosas e pertinentes, deixando que miríades de lágrimas de outras tantas saudades ululantes, se abatessem nos corpos desafectados de protecção adequada.
As Queijadas da Vila, após o pequeno almoço madrugador. O café, Delta, claro, a despertar renovadas atenções. a Afinar sensibilidades parecendo exaustas, mas que renasciam, qual Fénix, temperadas pela visão dos fieis que se dirigiam à primeira missa da manhã, indiferentes à morrinha, de rostos abertos e confiantes.
Fiz a viagem de Ponta Delgada ao Nordeste na carreira, a primeira da manhã percorrendo a estrada pouco movimentada e readmirando paisagens e recortes, a fixar imagens e momentos, as vacas nos pastos, as carrinhas que transportam o leite, pequenas povoações e gente que entra, gente que sai, as crianças, os jovens a caminho da escola e eu a lembrar-me de mim.
Tinham-me falado do Nordeste como uma miragem num deserto rodeado de oásicos sistemas floridos e verdejantes, numa abordagem surrealista da visão, de quem chega e se depara, com um quadro pintado em fervorosos momentos de arrebatação criadora.
A povoação de casas típicas , arejadas, a casa museu João de Melo, o jardim, o café onde me resguardo e abasteço de iguarias. O miradouro sobre o mar, a rocha a pique, o verde a envolver as casa em cima, num clima de silêncios, voltar ao miradouro, e novamente o mar estanhado, verde chumbo, denso na voragem da maré, a igreja.
Um táxi, carro de aluguer, parado num lugar reservado. Procuro com os olhos o motorista e não vejo ninguém, até que ouço uma voz, vinda de onde?
-Bom dia, precisa que o leve.
Olhei a figura, magro, rosto bonançoso, olhos que reflectem amor, lealdade a procurar saber ao que vinha. Como te chamas, amigo?
Disse-lhe ao que vinha. Desvendar a meus olhos o infinitamente belo. A pretensa miragem. A descoberta de mais uma das maravilhas açorianas, mas que o tempo, chuviscoso , não estava a colaborar.
Os olhos dele iluminaram-se num clarão de empatia a mandar-me entrar.
- A viagem até à cidade de Povoação são vinte euros, o resto é por minha conta.
Homem grande e destemido, homem bom. Como te atreves a acreditar que acertaste em tomar-me como amigo?
Pelo caminho, também eu confiante, sem saber das rotas, adivinhando boas intenções, foi-me falando de si, dos tempos difíceis da emigração na América, o trabalho quase esforçado para amealhar o suficiente e voltar. Na que ele não era dos que se bastavam com dinheiro. Ali é que era a sua paixão e comprara o táxi, algum dinheiro de parte, uma vida sonhada nas refegas erradicas, naquele deserto apaixonante, apaixonado.
-Olhe, ali, aquelas vivendas no alto da montanha, são de pessoas importantes do Continente, casas de férias.
E eu a imaginar, para mim próprio, os senhores importantes do Continente a julgarem-te parolo, imbecil, por teres trocado a vida faustosa das Américas por um lugar pasmado de beleza. E a contextualizar-te comigo.
Parou o táxi junto a um jardim que abarcava uma vasta área em planalto, delineado de formas graciosas, ramadas em túnel, palmeiras anãs , flores, o vermelho, o azul, o rosa, o lilás , o amarelo e os verdes, numa deambulação de cores e odores. Numa simbiose de deuses tocando trombetas melodiosas e eis a placa de homenagem ao homem e à beleza reunida num feixe, com o mar por fundo, escarpa a pique, o poema:
Toda a beleza é beleza
Para quem na beleza crê
A beleza é só certeza
Conforme a vista que a vê

Silêncio de calma
Mudez carinhosa
Afagas muralha
Na noite nervosa

Silêncio que alentas
Meu sonho desfeito
Ai como atormentas
O mal do meu peito

E quando te calas
Calado me dizes
Que as horas sem falas
São horas felizes

De João Teixeira de Medeiros

Embevecido por tanta beleza, recolho-me junto ao murete que limita a queda abrupta e desvenda plena de epopeica visão o mar imenso, ondulante e a esfregar-se, preguiçoso,na base das rochas que já foram suas amantes e agora, só enamoradas.
O homem do táxi e eu, em silêncio, ambos sabendo que amávamos a mesma substância mítica e sem ciúmes nem desavenças fruíamos desse amor, partilhando emoções vindas do sonho de sermos homens.

registed by: Samuel Dabó

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