09/02/2008

MEMÓRIAS DA GUERRA

O sol tórrido de Julho, manhã cedo, já alagava os pescoços dos soldados e atraía a mosquitagem sedenta, queimando as frontes latejantes dos que, bem atentos, íam picando a estrada de terra amarela avermelhada ao longo do percurso de 8 quilómetros.
O grupo da frente, os picas, pé após pica e novamente pé, na tentativa de detectar mina ou armadilha, detinha a responsabilidade e o risco.
Para tráz, estrada liberta do medo traiçoeiro, ficavam emboscados os pelotões , cada um de quatro, na espessa floresta de tons verdes contrastando com o amarelo do capim.
Chegados ao local, os homens do último pelotão e a milicia que lhes servia de escudo avançado, tomaram posição nas bermas da estrada, sobre a protecção quente e humida da mata.
Por uns breves momentos, a memória alcançava outras paragens, momentos de meninos, outras guerras, os pais, os amores.
O perfume adocicado dos cajueiros, nesperas de África no aroma. O olhar atento dos vigias. Ouviram-se, enfim, o roncar das berliets que se aproximavam, dois terços percorridos sem incidentes
Os homens, impacientes, subiram para as camionetas carregadas de víveres, e alguns sorrisos procuravam desanuviar a tensão das horas anteriores.
Ao iniciar da marcha, Blooommm!..., Uma forte e inexperada explosão, atirou ao ar homens e fardos de comida, como se houvesse uma falha de gravidade.
Os homens espalharam-se pelas bermas e disparavam em todas as direcções, sem nexo.
Depois nada, o silêncio e de repente, um grito lancinante do motorista da primeira camioneta: não, não me deixem morrer. Quero ver o meu filho.
A perna presa por tendões, junto ao joelho. Era grave O comandante pede um helicoptero via rádio. Que não. Os gritos do motorista: quero ver o meu filho. E o quartel general dando instruções, o heli teria de vir de Bissau.
A coluna reorganizou-se. Apesar das picas, o adversário usava outras técnicas, os fornilhos comandados à distância, cujos explosivos são enterrados mais fundo e com antecedência, tornando a detecção quase impossivel com os métodos artesanais.
Apesar dos esforços do enfermeiro, o motorista não iria conhecer o seu filho. E o filho deste homem não vai saber que o pai morreu sem glória, de uma forma torpe ao serviço de interesses
mesquinhos.
Os milicias Africanos que deviam ir na frente recusavam. O chefe deles, corajoso e leal aos compromissos, gritava com eles para que tomassem as posições. E deu o exemplo, procurando arrastá-los, correu para a frente das viaturas e Blooommmm!, nova explosão e já só o corpo dele em pedaços que ninguém iria chorar.
Perdemos a confiança nos milicias. Se eles tinham recusado é porque estavam coniventes. Corrompidos.
Alguns de nós, vencido, de todo,o cansaço, tomámos a dianteira da coluna e regressámos sem mais incidentes.

Autor: João Raimundo

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