26/02/2008

MEMÓRIAS DA GUERRA (G)

O toque de alvorada, ao contrário do cenário em tempo de paz,é feito cama a cama, rompendo o silêncio na madrugada.
- Levantar! está no ir!.
Ensonados, os corpos húmidos, sonhos interrompidos, pesadelos, corações acelerados, os homens da companhia vão-se arrumando para a partida. E vão saindo para a parada, formando em fila, ordenados, para receberem o pequeno almoço e a ração de combate.
São jovens,Trigueiros, vindos de todas as regiões da grande metrópole. Fazem parte dum rebanho ordeiro e mantido cordato pelo medo e iletracia. Estão convictos que a sua presença em África é em defesa da Pátria. Os outros, os da Pátria alheia, são simplesmente turras.
Manuel António vai tentando minar-lhes a inteligência.
- Repara nesta situação: estás em tua casa, com a família e os teus pertences e de repente, aparecem uns tipos e dizem que é tudo deles. Se queres viver, tens de trabalhar para eles. E pagar imposto por seres natural da tua terra.
No pequeno circulo, já aviado, onde se desenrolava esta conversa, Manel o Básico.
_ Pois é, pois é. Eu cá não deixava.
E ria-se.
- É básico!
- Eu básico, pá? Eu sou padeiro. Não é Manuel António?
- Claro. E a propósito, desenrasca-me mais um casqueiro que a viagem vai ser longa.
A fila iniciou a marcha. Na frente os guias Africanos. De mistura com os soldados,outros Africanos, as milícias. O oitenta era um deles. Ganhava oitenta pesos e porque nunca tinha visto tanto dinheiro, pulou de contente por toda a ta banca. Ficou o oitenta.
O nascer do sol trazia, desde logo, a força do calor que nem a mata densa refrescava.
Os homens seguem os trilhos oficiais e não sabem, verdadeiramente, ao que vão. Obedecem cegamente, como manda a disciplina militar. Atentos a ruídos estranhos.
Pássaros coloridos cortam o ar rarefeito e trazem uma aura de frescura. Os jagudis, macabros, espreitam no cimo das árvores uma oportunidade de festim. É proibido matar jagudis. Os abutres são protegidos, constituindo uma espécie de preservadores da higiene ambiental. Os macacos saltam, espavoridos, gritando slogan e impropérios à passagem da tropa. Pressentem tormenta.
As horas passam lentamente. Tudo é lento em África, menos a as balas. O cansaço vai-se apoderando dos homens liquefeitos pela intensidade do sol, a água a esgotar-se nos cantis. Os mosquitos sugando o suor. Sôfregos, não satisfeitos, trespassam a pele e chegam ao sangue.
Manuel António pensa em Alexandra, com a certeza que ela o espera sem temor, ansiosa. E busca, nessa certeza, forças para continuar. Os pés, com joanete, são uma tortura.A água como que se evapora. Juraria que não abusou do consumo. É certo que repartiu com um companheiro desprevenido. Não quis abastecer com água da bolanha e usar os comprimidos para purificação. Não queria facilitar, para poder vencer esta provação. De quê? de quem? De si próprio, á espera de ser homem?
Houve ordem para parar e, tomadas as devidas precauções, o piquenique podia começar.
Há sete horas que caminhavam, lentamente, sem paragens. Os camuflados húmidos que os raios intensos do sol não secavam. Sentados, um pouco. Olhos pesados. Sol, suor, pó. Os mosquitos. Dores de cabeça. Pensamentos em turbilhão querendo romper, acertar o passo com a razão.
A paragem foi de pouco estimulo, já porque a ração é intragável e o recomeço, sem destino conhecido, sem saber quando acaba, se vai ou não haver combate, não ajuda os membros tolhidos pela jornada.
Num instante, tudo começou, o estrondo seco das saídas de morteiro, os rebentamentos das granadas, perto. Tinha inicio o assalto a uma importante base inimiga, mas parecia haver surpresas. E as nossas tropas estavam sob fogo intenso e de grande amplitude.
Há feridos. Passam a palavra para o enfermeiro que corre ao local. Já não há medo nem fadiga. Os tiros e explosões, fizeram desaparecer, como por magia, o quase desfalecimento dos homens de longe. O combate está encarniçado.Na linha da frente ouvem-se gritos ofensivos, de um lado e do outro. Tiros a sério. Não é filme. Matam. Ferem. Estropiam.
- Filhos da puta!
Manuel António resiste. Não quer matar, mas também não quer ser morto. Deitado no chão. A arma em posição. Dedo no gatilho. Fez , até, alguns disparos para o ar. Céu aberto O coração apertado. Frontes latejantes. O cérebro a estalar. Ouve os gritos na frente. Os mosquitos aproveitam-se e sugam mais.
Quando a derrota parecia eminente, a aviação, entretanto chamada, vez a sua entrada. O roncar conhecido dos motores fez soltar gritos de alegria e renovar o estimulo para voltar.
Os aviões soltaram bombas. As armas adversárias. foram-se calando para não denunciar posições, dada a desproporção de forças.
Um helicóptero, por sobre as nossas cabeças. Os comandantes, frescos, sedentos de medalhas e glórias vãs avaliavam a situação. Havia muitos feridos e alguns mortos. Os homens estavam exaustos. Mandaram recuar.
A viagem de regresso fez-se com outra força. A presença dos aviões dava confiança e reconstituía energias julgadas impossíveis. A noite aproximava-se de mansinho.

Autor: João Raimundo

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